Padre Vieira na Inquisição por sua defesa dos cristãos-novos e judeus Por Francisco José dos Santos Braga (*)

(…) Antes de falar sobre a vida e obra de Pe. António Vieira (1608-1697), figura ímpar das letras luso-brasileiras, convém constatar sua importância histórica verificável nas comemorações do Quarto Centenário de seu nascimento que
transcorreram no ANO VIEIRINO 2008 estendido a 2009, festejado e celebrado em congressos, exposições, concertos, seminários, documentários e vários outros eventos e homenagens que tiveram lugar no Brasil e no Velho Continente, sobretudo
em Portugal (Universidade de Lisboa, junto com Universidade Católica Portuguesa e a Província Portuguesa da Companhia de Jesus) e na Itália (Universidade de Roma La Sapienza). Em Lisboa, foi marcante o Congresso
Internacional “Padre António Vieira: Ver, Ouvir, Falar: O Grande Teatro do Mundo” que reuniu mais de 100 especialistas da Alemanha, Brasil, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Portugal.

Para compreender a vida de Vieira e sua abrangente obra escrita (30 tomos na última edição portuguesa do Círculo de Leitores), é necessário situá-las no tumultuado século XVII. Inicialmente se deve constatar que foram inúmeros os
acontecimentos políticos e militares que sacudiram a Europa e, se os tempos exibiam essa “diversidade”, Vieira, fruto de seu tempo, não conseguiu passar ao largo das turbulências de seu século, cujo reflexo assistimos em sua própria vida,
feita de cortes radicais, de inversões abruptas que se repetem.

Na vida social, Vieira assistiu ao nascimento e rapidíssimo crescimento das cortes, com a passagem da hegemonia dos reinos de Portugal e Espanha para duas novas potências: a Inglaterra e a Holanda. Por um lado,
ingleses e flamengos fortaleceram suas economias e lançaram as bases de seus impérios coloniais, ancorando-se com competência nos princípios mercantilistas; por outro lado, o triunfo da “razão de Estado” acompanhou o desenvolvimento
constante do centralismo monárquico, até levar à monarquia absoluta de direito divino, defendida por Luís XIV de França. A crise espanhola começou a se delinear no final do século XVI, no governo de Felipe II, que enfrentou rebeliões em
Nápoles, Andaluzia, Portugal e Países Baixos, havendo perdido sua “Invencível Armada”, sua poderosa marinha de guerra. A União Ibérica (1580-1640) mostrou-se fortemente desfavorável a Portugal que herdou todos os inimigos que a Espanha
tinha. A Holanda invadiu suas colônias na América e África, resultando num enfraquecimento português devido às guerras espanholas. Considerável parcela da nobreza mercantil portuguesa possuía muitos interesses na colonização e lutou pelo
reconhecimento do Duque de Bragança como novo monarca português, consolidando em 1640 a separação da Espanha e o início da Dinastia de Bragança com D. João IV. ¹

No campo do conhecimento, Vieira assistiu à passagem de uma cosmovisão medieval tanto para a Revolução Científica do século XVII (representada pelas descobertas de Kepler, Newton e Galileu), quanto para uma
filosofia independente, tradicionalmente reconhecida como o início da Filosofia Moderna, com o surgimento de novas metodologias: uma moderna epistemologia e a ruptura com a doutrina escolástica. É assim que se observa no século XVII
inúmeras e profundas inovações: Francis Bacon, considerado por Kant como inaugurador do empirismo, inova com o método indutivo, enquanto René Descartes, tido por Kant como predecessor do racionalismo, reconstrói uma
metafísica de caráter epistemológico a partir do sujeito ordenador do conhecimento. Thomas Hobbes e John Locke, ambos filósofos empiristas ingleses, o primeiro com sua teoria detalhada do contrato social, e o segundo, um ideólogo
do liberalismo, foram dois dos fundadores da filosofia política. Por outro lado, Spinoza e Leibniz foram seguidores de Descartes, portanto, ambos racionalistas. O primeiro, judeu holandês, que inovou principalmente pelos seus
conceitos de Deus, de natureza naturante e de monismo neutro; o segundo, matemático e físico alemão, além de filósofo, o qual, como tal, contribuiu para a metafísica com a sua teoria sobre as mônadas.

Embora Vieira tenha sido homem de seu tempo e, portanto, afetado por todas essas turbulências, foi no campo artístico, mais especificamente no da
oratória sacra, que Vieira assistiu à maré ascendente do barroco, nas artes e nas letras, não ficando imune ao conceptismo ², tomando-lhe o jogo constante entre alegoria
e realidade e especialmente adotando a concepção lúdica e teatral do grande barroco em sua oratória.

João Lúcio de Azevedo, o grande biógrafo de Vieira ³, foi muito feliz ao dividir a vida do grande orador em seis períodos, com os títulos com que caracterizou cada um deles, fruto da observação das reviravoltas por que
passou Vieira ao longo de sua vida, a saber: o religioso, de 1608 a 1640; o político, de 1641 a 1650; o missionário, de 1651 a 1661; o vidente, de 1662 a 1668; o revoltado, de 1669 a 1680; e,
por fim, o vencido, de 1681 a 1697. É importante observar que o espírito religioso é o princípio unificador que perpassa todos os seus empreendimentos. Neste discurso vamos nos servir da divisão proposta por Azevedo, para
examinarmos fatos da vida e a obra de Vieira.

Sobre o primeiro período da vida de Vieira (1608-1640), chamado de O Religioso, temos a dizer que, embora tenha nascido na freguesia da Sé, em Lisboa em 1608, veio morar em Salvador (Bahia)
juntamente com a família com a idade de 6 anos. Antes, em 1609, veio seu pai para trabalhar como escrivão no Tribunal da Relação da Bahia. Estudou no Colégio da Companhia de Jesus e aos 15 anos manifestou sua decisão de entrar na Ordem.
Iniciado o noviciado em 1623, concluiu-o em 1625. Ainda noviço, foi testemunha ocular da invasão holandesa da Bahia (1624), da qual fará relato circunstanciado em 1626. Como Vieira era fraco nos estudos, pediu fervorosamente à Virgem
Maria que o curasse. Mais ou menos nessa época ocorreu com ele um sinal conhecido como “milagre do estalo”. Seguiram-se etapas normais da carreira do jesuíta: estada nas aldeias de índios para melhorar o conhecimento da língua tupi,
magistério no Colégio de Olinda (1626), ensinando retórica. Data de 1626 a primeira Carta Ânua da Província do Brasil, enviada por Vieira, de que temos conhecimento, constituindo-se um maravilhoso documento sobre a violenta entrada que os
holandeses fizeram na cidade da Bahia, dando notícia das ocorrências dos anos de 1624-25. Foi escrita em língua latina, por ordem do Provincial da Bahia ao Geral da Companhia. Seguiram-se os estudos maiores, três anos de filosofia e
quatro de teologia, ordenando-se Vieira sacerdote jesuíta em 1635. Três anos depois era nomeado professor de teologia. A partir de 1633 começou sua carreira de orador. Através dos sermões conservados de sua pregação na
Bahia, [AZEVEDO, apud PALACÍN, 12-13] teceu os seguintes comentários:


“Nos sermões deste tempo mostra-se já Vieira o orador que mais tarde havia de granjear dos contemporâneos tamanho aplauso. Desde então, pode-se afirmar, foi sempre igual a si mesmo; possui as qualidades todas que o distinguem; nenhum
dos defeitos corrigiu depois. Erudição, estilo grandioso, intimativa, número, propriedade notável da linguagem, elegância e pureza, de uma parte; de outra, o abuso das alegorias, das antíteses, as sutilezas, os trocadilhos, os
maneirismos, que inflamavam a literatura da época, e sobretudo a eloquência”.

O segundo período da vida de Vieira (1641-1650), designado O Político, iniciou-se com a Restauração do Reino de Portugal e com a proclamação de D. João IV, consequências naturais da Revolta Restauracionista que
teve lugar em 1º de dezembro de 1640.  Pouco antes, Felipe III tinha sido obrigado a deslocar a maior parte do seu exército de Portugal para combater as revoltas que alastravam na Catalunha e noutras regiões. Ou seja, por algum tempo
Portugal ficou militarmente indefeso. Ainda no contexto da Dinastia Filipina (1580-1640), Felipe III, rei de Portugal e Espanha, nomeara Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão, o 1º vice-rei do Brasil. Mascarenhas desembarcou em
Salvador, na capitania da Bahia, a 16/04/1640, iniciando seu governo a 26 de maio. Com a chegada à Bahia da notícia da Restauração da Independência de Portugal, pela Carta Régia de 15/02/1641, Mascarenhas reconheceu a autoridade
de D. João IV imediatamente, usando de cautela para não suscitar a hostilidade da guarnição castelhana da Bahia. Tendo aderido à proclamação e para exprimir o júbilo do Estado do Brasil, Mascarenhas enviou uma embaixada para prestar
homenagem ao novo rei encabeçada por seu filho D. Fernando Mascarenhas e dela faziam parte dois jesuítas jovens promissores: padres António Vieira e Simão de Vasconcelos, que futuramente haveriam de ser grandes escritores. Assim sendo, em
1641 Vieira partiu em caravela para Lisboa em 26 de fevereiro, lá chegando em maio, quando decidiu apoiar a causa dos rebeldes, de que o Duque de Bragança, proclamado rei D. João IV, era a face visível. O mesmo Vieira que alguns meses
antes defendera, sem vacilar, a realeza de D. Filipe III, decidiu-se a jurar fidelidade ao partido restauracionista. Muito bem acolhido por D. João IV, Vieira passou a frequentar a corte, tornando-se pregador na Capela Real já a 1º de
janeiro de 1642, passando, a partir dessa estreia, a receber encomendas regulares para pregar ali. No mesmo ano, passou a dar sua opinião sobre governança, ganhando poder na corte de D. João IV. Na conturbada Lisboa dos tempos da Guerra
da Restauração contra a Espanha, Vieira abraçou de corpo e alma seu papel de conselheiro do rei, e a sua influência em decisões políticas cresceu muito. Entre 1642 e 1646, proferiu alguns dos mais marcantes sermões que então se escutaram
na Capela Real, desta vez para apelar à resistência e à colaboração de todos na luta contra a ameaça militar espanhola. Na mesma época, começou a interessar-se pelos cristãos-novos que viviam em Portugal e a protegê-los da
Inquisição. Pragmático, avaliou as péssimas condições do reino português, o que o levou a propor ao rei admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa, defendendo com cada vez maior empenho o regresso a
Portugal dos judeus emigrados e o uso do seu capital para fazer face às grandes dificuldades financeiras enfrentadas pelo partido de D. João IV. Cabe lembrar aqui as missões diplomáticas a que foi enviado pelo rei de Portugal à França,
Inglaterra, Países Baixos e Roma. Em 1646, Vieira seguiu para a França e Países Baixos, no intuito de captar apoios financeiros para a frágil causa dos rebeldes portugueses. Passou por Paris e Ruão, onde teve contato com comerciantes
judeus que mantinham relações com cristãos-novos portugueses, mas acabou por ficar a maior parte do tempo residindo em Haia e atuando em Amsterdam. Foi, portanto, com os holandeses que Vieira despendeu mais tempo negociando, os mesmos
holandeses contra quem tão ferozmente lutara no Brasil. Observou atentamente a forma como os holandeses organizavam os seus empreendimentos comerciais, dos quais retirou valiosos ensinamentos para a situação portuguesa, tendo idealizado
uma companhia de comércio para as colônias portuguesas, nos moldes das companhias holandesas. Também se uniu ao embaixador Francisco de Sousa Coutinho para produzir muitas propostas relacionadas com a política comercial e diplomática de
D. João IV, não poupando críticas ao desempenho de muitos ministros portugueses. Na mesma ocasião, Vieira frequentou a próspera comunidade de judeus de origem portuguesa estabelecida em torno da sinagoga de Amsterdam.
Entre os diversos judeus com quem contactou, Vieira conversou longamente com Manassés Ben Israel, um conhecido erudito da comunidade e autor de diversas obras de exegese bíblica. Muitas dessas conversas versaram, certamente, sobre temas
messiânicos, e delas Vieira deve ter retirado muitas ideias e reflexões para o livro que se preparava para escrever, a “História do Futuro” (iniciado efetivamente em 1649). Além disso, procurou sensibilizar a comunidade
judaica para as enormes carências financeiras de Portugal. A resposta de alguns desses comerciantes judeus foi até afirmativa, por serem eles quem financiou a atividade diplomática em Paris, nos Países Baixos e em Münster, cidade da
Vestfália onde se negociava o acordo de paz (“Paz de Vestfália); mas quando chegou, no início de 1648, a notícia de que a Inquisição tinha prendido Duarte da Silva, um dos principais comerciantes cristãos-novos de Lisboa, esse apoio dos
cristãos-novos de Amsterdam foi retirado. Para desespero de Vieira, os judeus abandonaram as promessas de apoio financeiro, e estas foram substituídas por pressões sobre o governo dos Países Baixos no sentido de retomar os ataques às
possessões portuguesas no Brasil, como forma de retaliação.

De regresso a Lisboa, Vieira concretizou o seu projeto de formar a Companhia de Comércio do Brasil, constituída por capital de comerciantes cristãos-novos, isento ao confisco da Inquisição (por alvará régio de 6/2/1649). Tal companhia
detinha o monopólio da exportação para o Brasil de produtos como vinho, azeite, farinha e bacalhau, e da importação, em navios próprios, de pau-brasil. A companhia viria a ser extinta em 1659 devido à forte oposição da Inquisição,
juntamente com a pressão dos colonos prejudicados pelo monopólio concedido à companhia. A 8 de janeiro de 1650, Vieira partiu para Roma em nova viagem diplomática, com a missão de negociar o casamento do príncipe Teodósio, o filho mais
velho de D. João IV. Em maio o papa Inocêncio X anulou os privilégios anteriormente concedidos à Companhia de Comércio do Brasil e Vieira, tirando partido do fato de estar em Roma, moveu influências para repor a situação. Não teve
sucesso. O seu empenho pelos judeus levantava cada vez mais suspeitas entre os inquisidores portugueses. No seu regresso a Lisboa, constatou que a sua cotação na corte deteriorara bastante. De um lado, o Santo Ofício fazia-lhe forte
oposição diante da sua impossibilidade de confiscar os capitais dos cristãos-novos na formação da Companhia de Comércio do Brasil; de outro lado, outra oposição mais grave enfrentava dentro da própria Ordem dos jesuítas. A razão é que,
sendo pertencente à Província do Brasil, Vieira tomara parte muito ativa no projeto da divisão da Província portuguesa em duas, contra o parecer quase unânime dos próprios jesuítas portugueses. Deflagrado o conflito, as autoridades da
Província pediram ao padre geral a expulsão de Vieira da Companhia de Jesus. Parece que se chegou a uma espécie de consenso entre o rei e os superiores da Província sobre a conveniência de afastá-lo, por algum tempo, da corte.

O terceiro período da vida de Vieira (1651-1660), conhecido por O Missionário, iniciou-se com a aprovação do padre geral, que lhe deu o cargo de superior, com a incumbência de reabrir a missão dos jesuítas no
Maranhão, já várias vezes fracassada. Desgostoso com a sorte das causas por que se empenhara na década de 1640, em fins de 1652 partiu Vieira de Lisboa para São Luís do Maranhão, cidade aonde chegou em janeiro de 1653. Rapidamente
constatou a calamitosa situação em que se encontrava a atividade missionária naquelas paragens longínquas, bem como a terrível dimensão dos maus tratos a que os colonos submetiam os índios. Preparou-se, pois, para um novo combate, mas
desta vez os inimigos eram, por um lado, os colonos, e por outro, as inóspitas condições naturais que os missionários enfrentavam no Maranhão. Sobre as dificuldades da missão, quanto à geografia do país e ao aspecto humano das diversas
tribos de índios, transcrevemos abaixo trecho do resumo apresentado por Vieira na exposição perante o Santo Ofício:



… indo-me para o Maranhão tanto contra a vontade de el-rei e do príncipe, como é notório, levando e convocando de diversas partes da Companhia para a mesma missão mais de trinta religiosos de grandes talentos, com os quais trabalhei
por espaço de nove anos, navegando neste tempo água doce e salgada mais de mil e quatrocentas léguas, fora muitas terras e desertos sempre a pé, favorecendo Deus tanto o fervor daqueles operários, que a missão e a Fé estava estendida
desde a serra do Ibiapaba até o rio dos Tapajós, sendo catorze as residências em que assistiam religiosos, … compus no mesmo tempo, com excessiva diligência e trabalho, seis catecismos que continham em suma todos os mistérios da Fé e
a doutrina cristã em seis línguas diferentes: um na língua geral da costa do mar, outro na língua dos Nheengaibas, outro na dos Bocas, outro na dos Jurimas, e dois na dos Tapuias …”

Vieira logo se apercebeu que o relacionamento com os colonos seria a parte mais difícil de sua missão. Desde os primórdios da missão dos jesuítas no Brasil sempre houvera desentendimentos e choques entre os padres e colonos por conta do
cativeiro dos índios. Mas, sobretudo no Maranhão, a situação era mais do que crítica, pois os colonos não poderiam sustentar-se sem o trabalho forçado dos índios. Logo na chegada dos missionários, estiveram os jesuítas a ponto de serem
expulsos, quando deram a conhecer à população as leis que traziam concedendo a liberdade aos índios escravos.

Em 1654, Vieira pregou o Sermão de Santo António aos Peixes, todo ele sob a forma de alegoria, a começar pela semelhança da condição de Santo António com a sua própria, aquele expulso da cidade italiana de Arímino pelos
hereges que não o quiseram ouvir, o qual se dirigiu à beira do mar e pôs-se a pregar aos peixes. A população local, ao ver tal milagre, converteu-se. Tal como fizera Santo António, Vieira proferiu o sermão aos “peixes”, fazendo-lhes
elogios e tecendo-lhes críticas, de modo alegórico e satírico, no dia 13 de junho, três dias antes de fugir ocultamente da cidade de São Luís, para Lisboa, em 1654, para tentar conseguir obter uma legislação justa para os índios locais.

Quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar e, já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles.”

Vieira criticava, por exemplo, a prepotência “dos peixes grandes”, que viviam do sacrifício de muitos pequenos (os escravos e os índios), os quais “engolem” e “devoram“. O alvo da crítica era os colonos do Maranhão,
esclarecendo que, por sua vez, em Portugal “haveria outros maiores que os comeriam, também a eles“. Censurou ainda os orgulhosos e os soberbos (peixes roncadores), os parasitas e oportunistas (peixes pegadores), os presunçosos
(peixes voadores) e os maliciosos e hipócritas (polvos).

A “fuga” de Vieira a Lisboa visou conseguir do rei apoio para os aldeamentos. O navio em que Vieira viajava foi desarvorado perto dos Açores e atacado por piratas holandeses que o saquearam deixando os passageiros na Ilha Graciosa; de lá
Vieira passou à Ilha Terceira e à de São Miguel, donde embarcou para Lisboa num navio inglês.

Um dos mais famosos sermões de Pe. Vieira, o Sermão da Sexagésima (1655), consistindo em dez capítulos e conhecido por tratar da arte de pregar, foi pregado na Capela Real de Lisboa em março de 1655. Nele, Vieira condena
aqueles que apenas pregam a palavra de Deus de maneira vazia. Também ataca o estilo de pregar dos Dominicanos. Para ele, a palavra de Deus era como uma semente, que deveria ser semeada pelo pregador. Por fim, chega à conclusão de que, se
a palavra de Deus não dá frutos no plano terreno, a culpa é exclusivamente dos pregadores que não cumprem direito a sua função, haja vista o seguinte trecho do sermão:

Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 1.I


E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.

Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que “saiu o pregador evangélico a semear” a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair

: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o
sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem
sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de
contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais

paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare. (…)


Ora, suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender a falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
(…)

Neste admirável sermão Vieira expõe ainda a sua concepção de oratória sacra. O capítulo VI do Sermão da Sexagésima ficou conhecido como Alegoria da Árvore. Nele, Vieira estabeleceu o princípio da “unidade da matéria” em
toda pregação para que o sermão seja eficaz e atinja os objetivos a que se propõe. Para exemplificar a unidade da matéria e “como hão-de ser os sermões“, Vieira utilizou a analogia com a árvore no seguinte trecho do capítulo VI:


“(…) Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de
ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela: estes ramos não hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os
discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de
ordenar o sermão. (…)”

Retornou Vieira no ano seguinte (1655), com esse apoio legal para os aldeamentos, mas a situação foi piorando, até que em 1661 as Câmaras de Belém e São Luís expulsaram os jesuítas do território embarcando-os forçadamente para Portugal.

No Sermão da Epifania (1662), proferido na Capela Real logo após a expulsão dos jesuítas do Grão Pará e Maranhão, ao chegar a Lisboa, relembrou Vieira o choque sofrido diante dessa expulsão violenta na
seguinte descrição:



Quem haveria de crer que em uma colônia chamada de portugueses se visse a Igreja sem obediência, as censuras sem temor, o sacerdócio sem respeito, e os lugares e pessoas sagradas sem imunidade? Quem havia de crer que houvessem de
arrancar violentamente de seus claustros aos religiosos, e levá-los presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los aferrolhados e com guardas até os desterrarem? (…)

O quarto período da vida de Vieira (1662-1668), denominado O Vidente, é marcado pelas circunstâncias políticas muito mais tensas do que anteriormente. Em 13 de maio de 1653 morreu o brilhante príncipe Teodósio, o
filho mais velho de D. João IV, potencial herdeiro da coroa.  Em 1656 morreu o próprio D. João IV, deixando como sucessor Afonso, porém a rainha D. Luísa de Gusmão passou a exercer desde então a regência, nomeando os condes de Castelo
Melhor e Atouguia como aios do jovem monarca. Ao invés de passar a coroa a D. Afonso, já casado (com Maria Francisca de Sabóia da dinastia francesa), com casa real própria e então com 18 anos, a rainha foi aconselhada a empossar mais
tarde o infante D. Pedro, então com 13 anos. Em 1662 D. Afonso fugiu da corte para Alcântara em companhia da facção de seu conselheiro, Conde de Castelo Melhor, instalando ali sua corte e obrigando sua mãe, a regente, a entregar-lhe o
poder. De posse do governo, já como D. Afonso VI, desterrou para longe da corte os principais apoiadores da candidatura do Infante Pedro. Entre os primeiros foi desterrado Vieira a Coimbra. Assim, Vieira se encontrava, pela primeira vez,
frágil politicamente, o que levou a Inquisição de Coimbra a acusá-lo de judaísmo. Quanto ao Tribunal do Santo Ofício, há muito que criticava o empenho de Vieira na defesa da comunidade judaica, bem como o seu interesse pelo messianismo de
raiz hebraica.

Logo após o golpe de 1662, Afonso VI logo reconheceu os préstimos do conde de Castelo Melhor e resolveu delegar-lhe as funções que hoje equivaleriam a de um primeiro-ministro, confiando-lhe “os maiores negócios do reino”. No comando da
administração pública, o conde demonstrou a garra de um verdadeiro estadista, dotado de enorme firmeza política, como refere Veríssimo Ferrão.

Quanto às irmãs de Afonso, a mais velha, Joana, veio a falecer prematuramente, e com isso Catarina, a irmã mais nova, tornou-se a primogênita mulher sobrevivente, com sua quotação no mercado matrimonial europeu em alta correspondente. Sua
mão foi cortejada por João de Áustria, irmão legítimo de Felipe IV da Espanha, e pelo próprio Luís XIV da França. Endividado, o recém-proclamado Carlos II da Inglaterra tinha todas as razões para casar-se uma infanta que trazia consigo um
vantajoso dote, mesmo que fosse católica. E foi assinado o contrato nupcial em 23 de junho de 1661, indo Catarina de Bragança morar em Londres. A rainha ficaria grávida três vezes, mas todas as gestações acabaram prematuramente. Por isso,
após a morte de Carlos II em 6 de fevereiro de 1685, o novo monarca foi seu irmão, James II, católico, tendo a rainha viúva liberdade para praticar sua fé livremente. A Revolução Gloriosa de 1688, contudo, complicou sua situação, por ter
restaurado o anglicanismo. Retornou a Portugal em março de 1699, onde seria regente sucessivamente para o sobrinho e o irmão antes de falecer em 31 de dezembro de 1705.

Entretanto, D. Afonso VI era débil fisicamente e mentalmente, o que levou seu irmão mais novo Pedro a conspirar em 1668 para declará-lo incapaz, depondo-o em seguida e convertendo-se em regente do reino. Desta forma, D. Pedro II não só
tomou do irmão o título, mas inclusive a esposa Maria Francisca de Sabóia, mediante um processo de declaração de impotência por parte do rei deposto.

Mesmo mais de 150 anos após o início da colonização, a violência dos colonos continuava inclemente para com os indígenas, e ela fazia-se sentir, com especial dureza, nos territórios recém-desbravados do Maranhão e do Pará. Incansável,
Vieira denunciou de forma veemente e corajosa os abusos dos colonos, sobretudo nos contundentes sermões que pregou em São Luís. Para os indígenas do Maranhão e de Belém (Pará), Vieira rapidamente ganhou o epíteto de
“Paiaçu” (Grande Pai), figura protetora por excelência.

Pe. António Vieira, o Paiaçu, entre os indígenas do Maranhão e Pará

No Maranhão ainda, Vieira redigiu um libelo que intitulou Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, dirigido à rainha, para consolá-la da morte do esposo D. João IV. Com base nas profecias de Bandarra,
Vieira ali predizia a ressurreição do rei, pois ainda lhe ficou por realizar a parte das profecias referente à derrota do Império turco e à instalação do Quinto Império, o império cristão, que daria início ao reinado de Cristo na terra.
Tal era sua fé na força profética de Bandarra, que Vieira se atreveu a reduzir seu pensamento a um silogismo:

Bandarra é verdadeiro profeta;

Bandarra profetizou que el-rei D. João IV há de obrar muitas coisas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando;

Logo el-rei D. João IV há de ressuscitar.”

Abrindo um parêntese neste meu discurso para possibilitar que dois outros autores portugueses se manifestem sobre Vieira, gostaria de apresentar aqui dois poemas que tratam desse sonho messiânico/milenarista de Vieira, que tanto incômodo
trouxe para a sua existência, como se verá abaixo:

António Vieira

Por Fernando Pessoa, Mensagem

O céu ‘strela e tem grandeza.

Este, que teve a fama e a glória tem,

Imperador da língua portuguesa,

Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,

Constelado de forma e de visão,

Surge, prenúncio claro do luar,

El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo.

É um dia; e, no céu amplo de desejo,

A madrugada irreal do Quinto Império

Doira as margens do Tejo.

Sobre Padre António Vieira

Por Miguel Torga, Poemas Ibéricos

Filho peninsular e tropical

De Inácio de Loiola,

Aluno de Bandarra

E mestre

De Fernando Pessoa,

No Quinto Império que sonhou, sonhava

O homem lusitano

À medida do mundo.

E foi ele o pioneiro.

Original No ser universal…

Misto de gênio, mago e aventureiro.

Retornando à linha mestra do discurso, é sabido que o manuscrito do libelo foi enviado por Vieira com carta datada de 29 de abril de 1659 ao padre André Fernandes, SJ, bispo titular do Japão, para que o apresentasse à Rainha. Porém, em
1660 André Fernandes foi intimado a entregar ao Santo Ofício a carta de Vieira conhecida como “Esperanças de Portugal, V Império do Mundo”, que teria consequências fatais para a sua vida, uma vez que se tornou a base da qualificação dos
crimes que lhe foram imputados pelo Tribunal do Santo Ofício de Coimbra. Não tendo-se esquecido das derrotas que Vieira lhe infligira no tempo de D. João IV na questão dos cristãos-novos, o Santo Ofício de Lisboa decidiu enviar o escrito
ao de Roma, para que desse um parecer sobre o conteúdo do libelo. Em 1661 chegou o parecer: “Julgava-o temerário, repleto de falsidades e sobretudo repreensível no abuso que fazia da Sagrada Escritura“, condenando expressamente
nove pontos. Com essa resposta, a Inquisição quis instruir um processo contra Vieira, mas a rainha, ainda no poder como regente, criou impedimento. Tal obstáculo desapareceu no ano seguinte com o golpe de Estado e o desterro de Vieira
para Coimbra. Já em fevereiro de 1663 Vieira foi chamado à Mesa. Por achar-se gravemente doente só pôde comparecer em julho. Foi-lhe perguntado então se aceitava as censuras, sem informar-lhe que provinham de Roma; diante de sua negação e
da promessa de justificar todas as proposições, abriram um processo contra ele. Durante quatro anos e meio, Vieira esteve primeiro recluso em prisão domiciliar; depois, a partir de 1º de outubro de 1665, recolhido ao cárcere da
Inquisição. Naqueles 26 meses, Vieira, sozinho e sem outra documentação que não o breviário e a Bíblia, redigiu as duas defesas em que tratava de justificar, com base nos Padres, Doutores e principalmente nos livros proféticos da
Escritura, sua concepção do Quinto Império — quinto por ser antecedido por quatro impérios clássicos do Livro de Daniel —, que deveria ser o coroamento da história.

Foi inútil seu esforço, pois em dezembro de 1667 leram-lhe a sentença condenatória, primeiro em particular no Santo Ofício e, no dia seguinte no colégio dos jesuítas perante toda a comunidade. De acordo com a referida sentença, ”

lhe foram censuradas algumas proposições, com nota de serem umas contra o comum sentido católico, fátuas, temerárias e escandalosas, e outras ofendiam as orelhas dos pios fiéis católicos e eram errôneas e injuriosas aos Santos Padres e
à Escritura Sagrada, e tinham sabor de heresia.

” E finalmente como conclusão: “Mandam que o réu… seja privado para sempre de voz ativa e passiva e do poder de pregar, e recluso no Colégio ou Casa de sua religião que o Santo Ofício lhe assinar…

No quinto período da vida de Vieira (1669-1680), conhecido por O Revoltado, vamos encontrar Portugal numa situação política mais favorável para Vieira, agora que um golpe de Estado depôs o rei Afonso VI,
colocando em seu lugar D. Pedro II. Para Vieira esta mudança política foi benéfica: muitos dos seus inimigos foram afastados da corte, o que lhe permitiu recuperar tanto a liberdade como a autorização para pregar. O lugar de reclusão foi
transferido de Coimbra para Lisboa e a sua voz voltou a ser escutada em Lisboa, na Capela Real. Mais uma vez exercitava o ofício de pregador régio. Parecia a Vieira que voltavam os tempos antigos de valimento na corte.

A verdade, no entanto, é que Vieira estava longe de gozar do ascendente o favor que recebera durante o reinado de D. João IV: D. Pedro II apreciava os seus sermões, mas guardava distância em relação ao jesuíta. Seria devido ao caráter
altivo e independente do rei? ou da presença da rainha, que não admitia influências poderosas junto ao esposo? O certo é que a grande mágoa de Vieira nos anos vindouros teve como origem a indiferença pessoal do rei em relação a ele, e, em
consequência, seu afastamento dos centros de decisão da corte. Por isso, aproveitando uma missão que lhe foi confiada — promover a canonização dos quarenta mártires do Brasil, português Inácio de Azevedo, mártir do século XVI, e 39
companheiros, todos jesuítas, cujo centenário ia celebrar-se — António Vieira partiu para a Itália em 1669, tendo como fito principal conseguir junto à Santa Sé a revogação da sentença condenatória do Tribunal do Santo Ofício português. A
inquisição continuava a vigiá-lo, até porque Vieira não tinha abdicado das suas ideias messiânicas e continuava empenhado na redação de vários textos sobre o tema. É dessa época a carta de Vieira a D. Catarina de Bragança, rainha da
Inglaterra:

Determino pleitear de novo a minha causa, e buscar em Roma a justiça que não achei em Portugal; e ainda que espero me não falte Deus, como defensor da verdade…

Mágoa é maior que toda a paciência…

Ademais, através de cartas de amigos, Vieira tomou conhecimento de que em Portugal a pressão inquisitorial recrudescera e que, desde 1671, tinham ocorrido várias prisões de cristãos-novos. A partir de Roma, procurou mover influências
contra a Inquisição. De Roma, em 31 de dezembro de 1671, escreveu uma carta a D. Rodrigo de Meneses sobre as atrocidades praticadas pela Inquisição portuguesa:

Porque não viverão os nossos cristãos-novos em Portugal como vivem em Castela, Itália e na mesma Roma, e porque não serão as nossas inquisições como a suprema Inquisição da Igreja? (…)


A Inquisição é um tribunal santíssimo, e totalmente necessário, mas não pode ser santo, nem tribunal, governando-se com estilos ou injustos ou injustamente praticados, com irremediáveis danos, não digo já do temporal do reino, mas da
inocência, da verdade e da mesma fé. Isto que digo a V. Exa. é certo e infalível, e todos os homens doutos e timoratos abominam e anatematizam tal modo de proceder, e lhe chamam não só injusto mas bárbaro, e se admiram e pasmam como
haja príncipe cristão que tal consinta, e vassalos que tal sofram…”

¹⁰

Nos cinco anos passados em Roma, Vieira também trabalhou a favor do recurso interposto ante a Santa Sé pelos cristãos-novos portugueses, buscando adquirir garantias e modificar a forma dos processos da Inquisição de Portugal.

Embora não tenha conseguido a revogação da decisão dos inquisidores, pois o padre geral dos jesuítas o dissuadiu de apresentar o pedido, alcançou do papa Clemente X uma perpétua isenção da jurisdição dos inquisidores, datada de 17 de
abril de 1675. ¹¹

Durante sua estada em Roma, Vieira frequentou os meios mais eruditos, continuando a pregar, primeiro em português, mas logo depois em italiano. Em breve, os seus sermões atraíram a atenção do público mais exigente, destacando-se a corte
romana de Cristina da Suécia, rainha que se exilara em Roma (1668), depois de abdicar e de se converter ao catolicismo. Seu palácio era um polo de atração de artistas, intelectuais e religiosos. Vieira frequentou a academia denominada
Arcádia reunida em torno da rainha sueca, que muito apreciava o seu desempenho oratório. Entre 1673 e 1675 pregou por diversas vezes na capela da residência de Cristina da Suécia, obtendo muito sucesso.

De retorno a Lisboa, em 1975, Vieira podia exibir uma vitória formal contra a Inquisição no breve pontifical, mas, por outro lado, percebeu que a sua influência na corte estava praticamente esgotada. As suas idas ao Palácio Real se
rarearam; as poucas intervenções de Vieira no Conselho de Estado e no Conselho Ultramarino relacionavam-se com questões da atividade missionária no Nordeste brasileiro.

 Folha de rosto do 1º tomo dos Sermoens do padre António Vieira, o primeiro dos doze volumes que foram expressamente preparados pelo autor com vista à sua publicação (Lisboa: Officina de Joam da Costa, 1679)
Folha de rosto do 1º tomo dos Sermoens do padre António Vieira, o primeiro dos doze volumes que foram expressamente preparados pelo autor com vista à sua publicação (Lisboa: Officina de Joam da Costa, 1679)

Em contrapartida, ocupava-se agora em publicar os seus sermões: o primeiro volume saiu em 1679. Sua obra mais famosa foi o Sermão da Sexagésima, que foi proferido na Capela Real de Lisboa em março de 1655. Seus mais de 200 sermões,
escritos dentro do estilo barroco conceptista ¹², divididos em 12 volumes, foram organizados ao final de sua vida. O último volume organizado pelo próprio autor só saiu um ano após a sua morte.

O sexto período da vida de Vieira (1681-1697), conhecido por O Vencido, reflete o ocaso a que se sujeitou, quando decidiu deixar a corte e viajar para o Brasil na condição de assumir em 1688 o posto de Visitador
Geral da Província do Brasil. Essa era a segunda fuga que empreendia na vida, desta vez por não achar em el-rei a correspondência de afeto que sempre experimentara em seus pais e irmão. Ao chegar ao Brasil não quis morar no colégio dos
jesuítas em Salvador, senão numa chácara fora da cidade, que ele considerou ter-se metido em um deserto. Pensava que chegara o fim de seus dias. Não foi o caso: ainda deveria viver na Bahia por dezessete anos.

Desse “sepultamento voluntário” Vieira foi arrancado, violentamente, por um acontecimento. Bernardo Vieira Ravasco, irmão de Pe. Vieira, era secretário do estado e guerra do Brasil desde 1649 (o segundo cargo mais importante no Brasil
colônia, logo abaixo do governador-geral), “ofício” que recebera por provisão real de D. João IV em “satisfação dos serviços do seu irmão, o padre António Vieira”, como prêmio aos méritos de Vieira em seu serviço. A 17 de fevereiro de
1646, Bernardo recebeu o cargo por provisão real da mesma data e, a partir de 7 de março de 1650, passou a servir o cargo sem limitação de tempo e com a possibilidade de transferir ao seu filho, Gonçalo Ravasco Cavalcanti de Albuquerque.
Neste momento em que o próprio Vieira se achava em descrédito na corte, o governador decidiu rebaixar seu irmão no exercício do cargo. Aconselhado pelos jesuítas da comunidade, Vieira apresentou-se ao governador, para tomar as dores de
seu irmão. Segundo sua própria narrativa desse encontro, foi recebido com violentos insultos, terminando o diálogo em impropérios mútuos, com a expulsão de Vieira do palácio.

A situação de saúde do padre Vieira piorou quando, em 1683, a sua família (especialmente o irmão Bernardo e um sobrinho do padre) foi acusada, pelo governador Antonio Sousa Meneses, o Braço de Prata, de envolvimento no
assassinato do alcaide de Salvador. E quais eram as condições de vida de Vieira nesse período derradeiro de sua vida? Vieira personificou, de corpo e alma, o ideal jesuítico do missionário. No desempenho dessa sua missão, teve padre
Vieira a oportunidade de escrever sobre a austeridade a que se submeteu, da qual deixou o seguinte testemunho em uma carta de 1693:



E para que vós também a tenhais, a austeridade, sabei, amigo, que a melhor vida é esta. Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco; trabalho de pela manhã até à noite; gasto
parte dela em me encomendar a Deus; não trato com mínima criatura; não saio fora senão a remédio de alguma alma;  choro meus pecados; faço que outros chorem os seus; e o tempo que sobeja destas ocupações, levam-no os livros da madre
Teresa e outros de semelhante leitura. Finalmente, ainda que com grandes imperfeições, nenhuma cousa faço que não seja com Deus, por Deus e para Deus; e para estar na bem-aventurança só me falta o vê-Lo, que seria maior gosto, mas não
maior felicidade…”

¹³

Em muitos dos seus sermões, Vieira desenhou o modelo ideal do pregador e esse aspecto da obra dele já tem sido bem estudado. Já quanto ao tema do protótipo do missionário, segundo Vieira, acredito que precisa ser melhor explorado, embora
alguma coisa já tenha sido escrita até agora. ¹⁴

Os últimos anos de Vieira foram passados na Quinta do Tanque da Bahia, nas cercanias de Salvador. Nesse sítio, Vieira ocupou-se da publicação dos seus sermões e da redação de Clavis Prophetarum
¹⁵, a Chave dos Profetas, um texto de temática messiânica e escatológica que nunca chegaria a concluir. Considerava essa obra tão importante que, em sua opinião, os sermões que então estava publicando, comparados com a
Clavis, eram como choupanas ao lado de “palácios altíssimos“. Consta que Vieira teria sido obrigado a compendiar os seus textos parenéticos sob o voto de obediência a seus superiores, que de fato lhe deram notoriedade e lhe
conferiram um lugar de destaque na História da Literatura. A par disso, os seus textos utópicos foram desvalorizados e esquecidos.

Podemos considerar que a Clavis é o opus magnum de Vieira e obra de sua maturidade, coroando o conjunto da obra profética vieiriana. Com ela, conseguiu decantar as desilusões e depurar as marcas
nacionalizantes que marcavam os seus livros proféticos anteriores. Se com estes, Vieira desenhara uma utopia quinto-imperialista que dava a Portugal o lugar de liderança na implantação da idade milenar de plenificação do tempo, agora, com
a Clavis, ele desenha uma utopia de pendor eclesiológico, de uma Igreja que abarca a humanidade num abraço de amor: é a Cidade de Deus agostiniana concretizada na Igreja e a transbordar no mundo. Tal
depuração explica-se em boa parte devido aos desenganos experimentados em relação ao Reino de Portugal e às suas instituições políticas e religiosas, que ele bem conhecera depois de duas décadas de labuta, durante as quais empenhou a sua
palavra, a sua escrita e a sua ação diplomática em prol da afirmação da independência de Portugal e da recuperação da sua liderança no concerto político das nações europeias.

Um ano após a morte de Vieira, o Superior Geral da Companhia de Jesus, Tirso Gonzalez, mandou fazer uma cópia do original manuscrito da Clavis, que foi enviada para Roma em 1699. Entretanto, um véu de silêncio
caiu sobre a obra durante alguns anos. Quinze anos mais tarde, o original foi enviado do Brasil para a Inquisição Portuguesa. A análise da obra recaiu sobre o relator Pe. Carlos António Casnedi, SJ ¹⁶e
apesar de ter exarado um parecer positivo no ano de 1714 em favor da divulgação da obra, a suspeita de mácula acabou por emperrar a sua publicação. Segundo a opinião de setores ligados à Inquisição, os escritos de Vieira estariam
enfermados pelo pecado filosófico, que consistia em afirmar que aqueles que tinham uma ignorância acerca da existência de Deus ou não pensavam atualmente n’Ele não incorriam em pecado grave, logo não seriam condenados
eternamente. ¹⁷ No ano de 1715, em Roma, em seguida a um provável interesse da parte da Ordem de Santo Inácio em publicar a obra, a Clavis foi novamente sujeita a uma comissão de censura romana
(cuja composição se desconhece), que emitiu um parecer desfavorável (cujo texto também se desconhece) que apontava alguns pontos da obra considerados perigosos, graves e heréticos. Conhece-se o texto do “expert” jesuíta Pe. André Semery
que assumiu a defesa do livro do seu confrade português. Pela tessitura da sua argumentação ficamos sabendo os aspectos considerados censurados pela dita comissão romana. Por exemplo, uma das questões que constava da censura inquisitorial
portuguesa e retomada pela romana tinha a ver com a previsão de um advento intermédio de Cristo à Terra, ou seja, uma segunda vinda antes da última para, então, julgar e encerrar a História. Outra questão é que os censores tinham acusado
Vieira de defender a possibilidade de ser admitido pelo juízo da Igreja a restauração dos sacrifícios da Antiga Lei para facilitar a conversão efetiva dos Judeus à fé cristã e a sua integração na fileira católica. Mas o que realmente
incomodou os censores foi o parecer do contra-censor jesuíta suspeitando de que houve má vontade dos censores relativamente a Vieira pelo fato de ele ser jesuíta. Esse parecer do censor jesuíta foi corroborado por outro censor dominicano,
frei Jacinto de Santa Romana, e confirmado por dois mestres de teologia da mesma Ordem de São Domingos. Apesar de o livro de Vieira ter conseguido vários pareceres favoráveis à publicação do manuscrito, certo é que a Companhia de Jesus
acabou não o publicando.

O pensamento de Vieira condensado nesta sua obra maior era demasiado avançado para sua época. A sua utopia cristã de plenificação da história não estava baseada numa lógica de exclusão cega e homogeneização de tudo que é diferente, mas de
inclusão e de negociação, bem na linha da integração multicultural. Subjacente nesta utopia está, pois, a metodologia inculturacionista aconselhado para o trabalho contemporâneo de evangelização ad gentes. ¹⁸
A obra maior de Vieira encerra um pensamento avançado, aberto, dialogante sobre o processo da Igreja e da mensagem de Cristo, e com ela Vieira soube, com arguta visão prospectiva, compreender os sinais dos tempos e
responder aos novos desafios lançados pelo mundo do seu tempo, com base no melhor legado dos conteúdos humanizantes do edifício teológico cristão.

OBRA ESCRITA DE VIEIRA

A uma vida tão variada, com tantos interesses divergentes, corresponde uma obra não só variada, mas dispersa. A maior parte dos escritos de Vieira são escritos ocasionais, traduzindo o momento palpitante e efêmero. São
estes: os 203 sermões, as 701 cartas e os escritos instrumentais, isto é, os relatórios e projetos, além de duas Representações perante o Santo Ofício, a Defesa, versão abreviada.

Além dos escritos ocasionais, há um grupo de escritos de tema convergente e pensados como uma elaboração sistemática de um tema central: o reinado de Jesus Cristo na terra, a saber: 1.
Esperanças de Portugal, Quinto Império do mundo

2. História do Futuro, que deveria servir como uma espécie de prólogo ao tema do Quinto Império. Através do índice que Vieira produziu para a obra, ficamos sabendo que Vieira só conseguiu redigir trechos da
primeira parte, e de forma incompleta, publicados sob o título Livro anteprimeiro da História do Futuro.

3. Clavis Prophetarum, obra inconclusa que Vieira pensava devia ser seu legado para a humanidade. Nos seus últimos anos de vida, pediu a padre Bonucci que o ajudasse, dando forma a seu pensamento. Conservam-se
vários manuscritos em latim e em letra muito miúda, chegando a setecentas páginas. Sobreviveu o resumo que padre Carlos António Casnedi, SJ publicou no Congresso Internacional sobre o III Centenário de Morte do Padre Vieira realizado em
Lisboa de 20 a 23 de novembro de 1997. As fontes utilizadas por Vieira para sua doutrina sobre a dignidade da pessoa humana são a Bíblia e o pensamento estóico de Sêneca, com sua visão heróico-trágica do homem. O tema da grandeza do homem
desenvolveu-o Vieira de forma sistemática nos cinco sermões que, na Quaresma de 1676, pregou em Roma diante da rainha Cristina da Suécia. Em linhas gerais, podemos considerar que a obra escrita de Vieira reflete o que o próprio Vieira
considerava a essência de sua missão, a sua vocação profética em suas duas vertentes, isto é, a denúncia pública de injustiças e pecados da sociedade humana e a promessa de uma intervenção decisiva de Deus para a realização do reinado de
Jesus Cristo na terra. Quanto à primeira vertente, da denúncia dos abusos dos governantes, da prepotência da autoridade, da violência e da opressão, sobressai sua defesa dos injustiçados, índios, negros, cristãos-novos que sem dúvida
constitui a grandeza moral de Vieira. Se Vieira achava que os Sermões não tinham uma unidade de plano e o desenvolvimento de um pensamento, tinha certeza de que o caráter moral lhes conferia unidade, a exemplo da denúncia
veemente que faz aos funcionários coloniais no Sermão do Bom Ladrão (1655):

“(…) O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo
rapio roubar

porque furtam por todos os modos da arte… Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam
pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo ele aplica despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo… Furtam pelo modo optativo… Furtam pelo modo conjuntivo…  Furtam pelo modo
potencial… Furtam pelo modo permissivo… Furtam pelo modo infinitivo… E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam
carregados de despojos e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas… Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele. (…)”

É possível diagnosticar, através deste sermão que parece atemporal, desnudados os desmandos e a mistura de interesses públicos e privados que infestavam e ainda infestam a administração pública brasileira, desde o início do Brasil
colônia — contexto em que os Sermões foram escritos — até a atualidade. Da sua coragem na denúncia não escapam os reis, quando se tornam responsáveis desses roubos:



É certo que os reis não querem isto, antes mandam em seus regimentos tudo o contrário; mas, como as patentes se dão aos gramáticos destas conjugações, tão peritos ou tão cadimos nelas, que outros efeitos se podem esperar de seus
governos? Cada patente destas, em própria significação, vem a ser uma licença geral in scriptis, ou um passaporte para furtar. (…)”

¹⁹

NOTAS EXPLICATIVAS

¹ O Duque de Bragança era um nobre português sem vínculos familiares com as dinastias anteriores, escolhido pelo povo português para fundar a terceira dinastia de reis portugueses ou dinastia de Bragança. As duas
anteriores foram a Dinastia Afonsina e a de Avis. Foi desconsiderada a Dinastia Filipina por ser constituída apenas por reis castelhanos da Dinastia Habsburgo.[STELLA, 2000, 268-9] observou com muita propriedade a
respeito da guerra da Restauração da Independência de Portugal:



A rebelião teve um êxito espetacular. A guarda do palácio da princesa Margarida, quase o único contingente espanhol em Portugal nessa ocasião, foi rendida sem dificuldades. Passados alguns dias, a fronteira com a Espanha foi fechada. O
Duque de Bragança foi coroado como D. João IV e, embora Olivares preparasse em Lisboa um contra-golpe, os planos de seus agentes foram descobertos.


A Felipe IV * não restava muito a fazer. Preocupado e debilitado com a sublevação da Catalunha, o Rei presenciava a crise da monarquia. Nesse momento, era mais importante manter a unidade nacional, arduamente conquistada a partir do
reinado dos Reis Católicos, do que a Coroa portuguesa.

Os despachos e cartas de Felipe IV às autoridades de Lisboa revelam o esforço do Rei para salvar o Brasil do jugo holandês. Por outro lado, indicam o pouco entusiasmo dos súditos lusos para atender aos apelos do Monarca.


Assim como os holandeses, os homens que ocupavam postos-chave na administração portuguesa sabiam que o prolongamento da guerra, por si só, minava o poder do Rei em Portugal e da monarquia espanhola na Europa. Enquanto no Brasil a
ocupação holandesa cerceava as liberdades individuais e coletivas, propiciava ao Reino reconquistar a soberania tomada pelos Felipes da Espanha.


Salvo manifestações isoladas e não significativas, a notícia da aclamação de D. João IV reavivou os ânimos no Brasil. Talvez a nova dinastia conseguisse resolver o impasse surgido com a tomada holandesa. Entretanto, os acontecimentos no
Reino indicavam que, principalmente, a soma dos próprios esforços e a consciência nacional seriam capazes de pôr fim à posse holandesa e aos inconvenientes naturais resultantes de qualquer dominação.

Com o domínio holandês, ressentiram-se mais o Norte e o Nordeste brasileiro do que o próprio Reino, assim como Portugal foi mais afetado com a dominação espanhola do que o Brasil. Lá, a intervenção filipina foi direta.”

* É indiferente chamar Filipe IV de Espanha ou Filipe III de Portugal. Trata-se da mesma personagem. Aqui o enfoque da autora é do lado espanhol, por isso mantivemos a referência a Filipe IV de Espanha.

² Primeiramente, cabe fixar que o Barroco se desenvolveu em torno dos ideais místicos da Contra-Reforma e foi um movimento pendular entre o espírito e a carne, que privilegiou a literatura calcada nos ideais do espírito,
já relacionada ao movimento jesuítico da expansão da fé. Foi essa estética do Barroco que propiciou o aparecimento de uma das figuras mais notáveis, no âmbito da literatura luso-brasileira: Pe. António Vieira.

Em segundo lugar, são duas as vertentes literárias do estilo barroco, que não se excluem, surgidas em meados do século XVII na Espanha: o quevedismo e gongorismo, entre nós renomeados de conceptismo e cultismo. A literatura conceptista
valoriza o conteúdo do texto num intuito persuasivo, através de jogos de ideias, que seguem um raciocínio lógico, racionalista, com retórica refinada. Sua preocupação está em enfatizar o plano das ideias, os temas e os conceitos do texto,
fazendo largo uso da lógica formal (silogismo). O conceptismo está mais presente na prosa, especialmente nos sermões de Vieira. Por outro lado, o cultismo caracteriza-se pelo culto da forma, pela construção da linguagem e pelo emprego de
recursos de ornamentação do texto. O cultismo está presente na obra poética de Gregório de Matos.

Um exemplo de texto conceptista é encontrado no Sermão de Santo Antônio do Pe. Vieira, o qual procura aqui justificar o expansionismo português com as Grandes Navegações (numa referência às várias colônias de Portugal nos continentes
americano, africano e asiático) e consolar os peregrinos que são os portugueses exilados de sua terra natal que cumprem a missão dada por Deus ao povo português.


“Quis Cristo que o preço da sepultura dos peregrinos fosse o esmalte das armas dos portugueses, para que entendêssemos que o brasão de nascer portugueses era a obrigação de morrer peregrinos: com as armas nos obrigou Cristo a
peregrinar, e com a sepultura nos empenhou a morrer. Mas se nos deu o brasão que nos havia de levar da pátria, também nos deu a terra que nos havia de cobrir fora dela. Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos
deu Deus tão pouca terra para o nascimento e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal; para morrer, o mundo.

³ AZEVEDO, J. L.: HISTÓRIA DE ANTÓNIO VIEIRA, COM FACTOS E DOCUMENTOS NOVOS, Lisboa: Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, tomos I (409 pp., 1918) e II (428 pp., 1921) A compilação
das cartas de Vieira, realizada por João Lúcio de Azevedo, saída em três volumes entre os anos de 1925 e 1928, apresenta várias cartas inéditas, atingindo um total de mais de 720 unidades, com correções das versões anteriores, notas
esclarecedoras sobre as personagens e assuntos implicados na correspondência.

pode-se considerar que Vieira era ambíguo em relação à corte. Por um lado, Vieira sentia-se seduzido pela vida de corte, com sua concentração de poder e riqueza, como possibilidade de ação e vida plena; por outro lado,
ao mesmo tempo, ela se lhe apresentava como uma encarnação física do mal, “os infernos de cá cima“, com suas misérias físicas e morais. Devido a essa atração e repulsa da corte, que Vieira sempre carregou consigo e deixou
manifestas em toda a sua obra, o corolário foi que ele manteve uma postura agressiva e crítica para com muitos cortesãos, o que lhe valeu muitas inimizades. Um de seus desafetos foi o conde de Ericeira, o qual, em sua
História de Portugal Restaurado, reconheceu excepcionais dotes de oratória em Vieira, ressalvando que, no que se refere aos negócios, estes “muitas vezes se lhe desvaneciam“, pois,
“como seu juízo era superior, e não igual, aos negócios, queria tratá-los mais sutilmente do que os compreendiam os príncipes e ministros“. Mais tarde, Vieira escreveu-lhe uma carta (Cartas CCXXX, pp. 573 ss.; edição de
João Lúcio de Azevedo, Lisboa, 1970), onde fez uma rápida análise das decisões políticas e militares tomadas pelo rei e pelos ministros a partir de suas iniciativas.

Na referida carta, Vieira lembrou, então, a criação da Companhia de Comércio do Brasil, sugestão sua que, efetivada,  permitiu a conservação do Brasil e o resgate do Recife do domínio holandês; outra proposta sua ao rei, também efetivada,
foi a introdução no Brasil das drogas da Índia; lembrou ainda que, na guerra contra o domínio holandês, obteve um empréstimo de trezentos mil cruzados para levantar uma frota que salvou a Bahia; por fim, mais tarde persuadiu o rei a
substituir o sistema de comércio através de caravelas pelo sistema de frotas de grandes naus e com artilharia, o que tornou seguro o comércio com a Bahia e a Índia. Lembrou, finalmente, o acerto de suas intervenções nas missões
diplomáticas a que foi enviado pelo rei à França, Inglaterra, Países Baixos e Roma, mesmo levando em conta os tempos difíceis em que ainda havia que consolidar a monarquia, através da manutenção de uma guerra contínua, no Reino contra a
Espanha e nas colônias contra os Países Baixos.

defesa (perante o Santo Ofício), op. cit, p. 165.

Sermão da Epifania, Capela Real, 1662, em Sermões, op. cit.

O mito do Quinto Império tem origens na Bíblia e foi submetido a diversas interpretações ao longo dos tempos. De acordo com o Livro de Daniel (Dan. 2, 24-45), Nabuconosor, rei da Babilônia (604-562 a.C.) teve um sonho
estranho e ordenou aos sábios que o decifrassem. Nesse sonho havia uma enorme estátua com cabeça de ouro fino, o peito e os braços de prata, o ventre e as ancas de bronze, as pernas de ferro e os pés de ferro e barro, tendo sido destruída
por uma pedra que se desprendeu de uma montanha, transformou-se novamente numa alta montanha que encheu toda a Terra. Foi de Daniel a seguinte interpretação para o sonho: ”

Tu é que és a cabeça de ouro. Depois de ti surgirá um outro reino menor do que o teu; e depois um terceiro reino, o de bronze, que dominará toda a terra. Um quarto reino será forte como o ferro, vindo a esmagar todos os outros, mas
sendo de ferro e de argila não se aguentará para sempre. A pedra que destrói os quatro metais ou quatro reinos simboliza o reino que o Deus do Céu fará aparecer, um reino que jamais será destruído e cuja soberania nunca passará a outro
povo

.”

De acordo com esta interpretação, é a seguinte a sequência dos 5 impérios: 1) o da Babilônia; 2) o Medo-Persa; 3) o da Grécia; 4) o de Roma; 5) o de Israel (segundo outras versões, seria o da Inglaterra). Em Portugal, o Bandarra
(1500-1556), Pe. António Vieira e Fernando Pessoa reformularam esse mito, dando-lhe o seguinte “esquema”: 1) o da Grécia; 2) o de Roma; 3) o da Cristandade; 4) o da Europa; 5) o de Portugal. Como seria este último? Seria não um império
material como os que o antecederam, mais especificamente o dos Descobrimentos, mas um império universal, civilizacional e espiritual. Seria um império de fraternidade universal a ser vivido aqui na Terra. Este império, por outro lado,
pressuporia o regresso de um Messias Redentor, concretamente D. Sebastião, o “Encoberto”, tornado símbolo, que, com o seu regresso, seria o mensageiro da paz e fraternidade no mundo, criando uma imagem especular do éden primordial.

[LIMA, 2000, 21-22] assim descreve a proposta vieirense do Quinto Império português:



(…) era tributária da tradição messiânica-milenarista lusitana, que propunha a eleição divina do povo português desde o advento do Milagre de Ourique (1139), ‘mito fundador’ constituído a partir do final do século XV, e que ganhara
forças no sebastianismo, gestado ao longo da União Ibérica. A ideia de Portugal como Quinto Império (ou Monarquia) fazia parte do repertório messiânico-profético português; D. João de Castro, o ‘primeiro apóstolo do sebastianismo’ nas
palavras de Oliveira Martins, escreveu um livro, em 1597, intitulado

De quinta et ultima monarchia futura, no qual defendia
a partir de uma miscelânea de textos e tradições proféticas e oraculares (de Merlim a Isidoro de Sevilha) e, sobretudo, a partir da leitura de Bandarra
a eleição do povo português, a vinda do ‘Encoberto’, na figura de Dom Sebastião, e a instauração da última monarquia.


O sonho de Nabucodonosor foi utilizado continuamente para justificar ‘a esperança vetero-testamentária de um reino messiânico terrestre’, não somente pelos judeus ou em Portugal, mas pelos cristãos em geral. Exemplo disso, no próprio
século XVII, foi o movimento protestante inglês chamado sugestivamente de ‘Homens da Quinta Monarquia’, que propunha uma Monarquia liderada pelos santos, que restabeleceria a tradição mosaica. Mais próximo às propostas de Vieira, está o
pensador protestante Pietrus Serrarius que anteviu um Reino de Cristo na Terra com a conversão de Israel no ano de 1666, uma das datas do Quinto Império vieirense e da Quinta Monarquia do Grão-Rabino de Amsterdam, Menasseh Ben Israel.


Segundo a ortodoxia católica, contudo, o Quinto Império seria o do Anticristo, que precederia a parusia, a segunda vinda de Cristo. Qualquer proposta contrária poderia ser vista como herética, como tentaram provar os inquisidores de
Vieira. Essa doutrina estava baseada em Santo Agostinho, defensor de que o Império Romano, o Quarto da estátua de Nabucodonosor, era o reino representante de Cristo na Terra, na sua união com a Igreja, formando a

Cidade de Deus, pondo-se assim contra as ideias proféticas quiliásticas ou messiânicas.”

A morte sobreveio a D. João IV em 1656, deixando-o sem realizar a parte das profecias referente à derrota do Império turco e à instalação do Quinto Império, o império cristão, que daria início ao reinado de Cristo na Terra. Portanto, era
natural que Vieira, segundo o qual  Portugal consumaria a realização do reino universal de Cristo através da ação do rei, substituísse D. Sebastião, o “Encoberto” ou o “Adormecido” (1554-1578), por D. João IV, e prenunciasse o regresso
glorioso deste último, agora na condição de ressuscitado.

Sentença que no Tribunal do Santo Ofício de Coimbra se leu ao padre António Vieira, pp. 181 ss., Obras escolhidas VI, op. cit.

Carta à Rainha da Inglaterra, D. Catarina, Roma, 21 de dezembro de 1669.

¹⁰ António Vieira, carta a D. Rodrigo de Meneses, Roma, 31 de dezembro de 1672.

¹¹ Breve de isenção das Inquisições de Portugal e mais reinos, p. 246, em Padre António Vieira, Obras escolhidas VI, op. cit.

¹² significa que Vieira privilegiou a retória e o encadeamento lógico de ideias e conceitos. Em geral, o sermão de Vieira está formalmente divido em três partes: 1) intróito ou exórdio (apresentação,
introdução do assunto); 2) desenvolvimento ou argumento (defesa de uma ideia com base na argumentação); e 3) peroração (parte final, conclusão).

¹³ Carta ao padre Francisco de Morais, da Bahia, em maio de 1693.

¹⁴ Cf. [PIRES, 1997: 29, apud VERÍSSIMO, 2011: 91-102]

¹⁵ Para maiores informações, queira consultar FRANCO, J.E.: “Uma utopia católica sob suspeita: censura romana à Clavis Prophetarum do Padre António Vieira,

SJ“, inhttp://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4562/1/LS_S2_18_JoseEFranco.pdf

¹⁶ O “Projeto Livro Livre” digitalizou uma tradução, feita por Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, do resumo que de Clavis Prophetarum escreveu o Pe. Carlos António Casnedi, SJ in
https://drive.google.com/file/d/0B9CNZ3uU92IVQ2UxN1N2V1VvUGM/view

¹⁷ A proposição do perdão da ignorância vencível e invencível de Deus foi condenada pelo Papa Alexandre VIII a 24 de agosto de 1690. Cf. A. Vacant e E. Mangenot,
Dictionnaire de Théologie Catholique, Tome 12, Paris, Lib. Letouzey et Ané, 1933, pp. 256-276.

¹⁸ O decreto conciliar sobre a atividade missionária da Igreja, chamado “Ad Gentes“, fez questão de distinguir expressamente a atividade missionária entre os gentios, da atividade pastoral que se exerce com os
fiéis inseridos nas Igrejas locais ou particulares tanto da velha tradição como das novas (Cf. Ad Gentes, 6). Inclui na atividade missionária, entendida como direito e dever dos cristãos, por um lado, o apostolado do exemplo ou
testemunho e, por outro lado, o anúncio explícito de Jesus Cristo aos não cristãos pela palavra e pela ação (Cf. Ad Gentes, 16).Cf. in

http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651207_ad-gentes_po.html

¹⁹ Sermão do bom ladrão, 1655, Sermões V, pp. 125-9. Vieira proferiu este sermão na igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV e sua corte. Lá também estavam os
maiores dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

AZEVEDO, João Lúcio de: História de António Vieira, com factos e documentos novos, tomos I-II (tomo I, 1918, 412 pp.; tomo II, 1921, 430 pp.), Lisboa: Livraria Clássica.

BESSELAAR, José van den: António Vieira: o homem, a obra, as ideias. Lisboa: Ministério da Educação e Cultura, 1981, 112 pp. (Col. Biblioteca Breve, Série Literatura 58).

LIMA, Luís Filipe Silvério: Padre Vieira: Sonhos Proféticos, Profecias Oníricas. O tempo do Quinto Império nos sermões de Xavier Dormindo, 2000, 94 pp. Cf. in

http://www.academia.edu/2550972/Padre_Vieira_Sonhos_Prof%C3%A9ticos_Profecias_On%C3%ADricas._O_tempo_do_Quinto_Imp%C3%A9rio_nos_serm%C3%B5es_de_Xavier_Dormino

PALACÍN, Luis Gómez, SJ: Vieira: entre o reino imperfeito e o reino consumado, São Paulo: Edições Loyola, 1998, 139 pp.

O homem e a sociedade no pensamento de Vieira. Um estudo sobre a consciência possível“. Síntese 6 (1979) maio-agosto, 27-46.

PIRES, Maria Lucília Gonçalves: “O protótipo do Missionário em textos de Vieira“, revistaOceanos (Lisboa), 1997, nº 30/31, pp. 25-32 (publicado por ocasião do III
Centenário da morte do padre António Veira).

STELLA, Roseli Santaella: O Domínio espanhol no Brasil durante a monarquia dos Felipes: 1580-1640, São Paulo: CenaUn Editora, 2000, 374 pp.

VERÍSSIMO, Nelson: “Catequizar e instruir: o perfil dos pescadores de almas, segundo o Padre António Vieira“, revista Limite, 2011, nº 5, pp. 91-102.

Cf. in http://www.revistalimite.es/volumen%205/06nelson.pdf

(*) DR. FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA, natural e residente em São João del-Rei, é escritor, pianista e compositor, além de tradutor para o português de obras da literatura grega, latina, russa, polonesa, alemã, inglesa
e francesa. Gerente do Blog do Braga e Blog de São João del-Rei. Graduou-se em Letras pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras de São João del-Rei (1968-1971). Graduou-se ainda pela UnB em Música com habilitação em
Composição (2002-2008). Obteve o grau de Mestre em Administração Financeira pela EAESP-Fundação Getúlio Vargas (1983). Participa de várias Academias como:

• sócio efetivo da Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, da Academia Divinopolitana de Letras, da Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos de Barbacena e da Academia Marianense de Letras

Ob. O artigo completo “Apologia de Padre Vieira: Meu discurso de posse na Academia Divinopolitana de Letras” se encontra em:

 

https://bragamusician.blogspot.com/2016/12/apologia-de-pe-antonio-vieira-meu.html

 

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