OS CRISTÃOS-NOVOS NA CAPITANIA DE MINAS GERAIS
Marcelo Miranda Guimarães (1)

A história relata que, em 31 de março de 1492, os judeus foram expulsos da Espanha pelos reis católicos Ferdinando e Isabel. Mais de 100.000 judeus cruzaram a fronteira adentraram em Portugal, na esperança de livremente praticarem suas crenças em terras lusitanas. Em 1496, Dom Manoel I, o Venturoso, casou-se com a filha dos reis católicos da Espanha na condição que Portugal também expulsasse os judeus. Dom Manoel I, interessado nos benefícios que a união das coroas traria, promulgou o decreto de expulsão em 5 de dezembro de 1496 (2).
A referida norma estabeleceu prazo até outubro de 1497 para que todo judeu passasse por um processo de conversão ao catolicismo, caso desejasse permanecer em Portugal. Muito daqueles que tinham boa situação financeira se refugiaram para outros países europeus, como a Holanda, por exemplo. Entretanto, a maior parte não tinha alternativa, a não ser permanecer em Portugal, sujeitando-se às novas regras. Surgia, então, os denominados cristãos-novos (3), que passaram a ser fiscalizados e perseguidos em razão de alguma prática judaizante ou se fossem considerados relapsos em relação à nova fé imposta. Possivelmente ele temia que a expulsão dos judeus poderia trazer colapso à economia portuguesa, inclusive o reino se beneficiava da grande influência intelectual do povo hebreu, pois muitos eram letrados, prósperos e até mesmo credores da Corte Portuguesa, financiando a construção de naus que zarpavam em direção à Índia e, posteriormente, rumo ao descobrimento do novo mundo.
Em maio de 1536, o Papa Paulo III editou a bula “Cum ad nihil magis ” que, além de estabelecer censura de publicações impressas, estabeleceu a inquisição em Portugal. O Tribunal do Santo Ofício (TSO) possuía prerrogativa para julgar e aplicar penas aos condenados, incluindo a sentença de morte na fogueira. Com a instauração do referido Tribunal, a situação dos cristãos-novos tornou-se muito penosa, pois além de serem obrigados a professar a fé cristã, tiveram seus bens espoliados, sendo humilhados e confinados a viver naquele país. Regressar para a Espanha, de onde foram expulsos era impossível, bem como seguir em frente, tendo à vista o imenso oceano Atlântico. Alguns conseguiram escapar pelo Mar Mediterrâneo, alcançando regiões ao norte da África e cidades costeiras ao sul da Europa.
Naquele momento de crise, de perseguição e desespero, surgiu Pedro Álvares Cabral, juntamente com alguns cristãos-novos, dentre eles o poliglota Gaspar da Gama, também conhecido como Gaspar de Lemos (4), capitão-mor, que gozava de grande prestígio junto ao rei D. Manuel. Pode-se imaginar a alegria de Gaspar da Gama, primeiro cristão-novo a pisar na Terra de Vera Cruz, regressar a Portugal, levando consigo a boa nova:  a descoberta de um paraíso, uma terra cheia de rios, montanhas, fauna e flora jamais vistos. Ele percorreu parte da costa brasileira entre 1501 e 1502, explorando, entre outras, terras como o arquipélago de Fernando de Noronha, a Baía de Todos os Santos e a Baía da Guanabara, Angra dos Reis e São Vicente.
Um outro cristão-novo de origem italiana, Fernando de Noronha (Ferdinando della Rogna), primeiro donatário do Brasil, demandou trazer um grande número de mão de obra para explorar as seiscentas milhas da costa, construindo e guarnecendo fortalezas, na obrigação de pagar uma taxa de arrendamento à Coroa portuguesa a partir do terceiro ano (1503 a 1506). Assim, milhares de cristãos-novos, fugindo das perseguições do TSO, começaram juntamente com seus patrícios, a colonizar o Brasil.
As comunidades de cristãos-novos se localizavam preferencialmente em cinco Estados: iniciou-se na Bahia, Pernambuco e Paraíba; mais tarde no Rio de Janeiro e Minas Gerais, que se destacou no Brasil e no mundo no século XVIII, quando a notícia da garimpagem do ouro nos seus rios e minas, tornou real o sonho de muitos aventureiros vindos de diferentes regiões, principalmente, do norte de Portugal.
Após a primeira visitação oficial do inquisidor ao Brasil, Heitor Furtado de Mendonça, em 1591, deu-se início às delações, inquirições daqueles que praticavam qualquer tipo de heresia que atentasse aos dogmas católicos, como por exemplo, práticas judaizantes, bruxaria, magias, curandeirismo, sacrilégios e mesmo apostasia. Analisando-se os processos da inquisição do século XVIII, pode-se constatar a presença significativa dos denominados cristãos-novos, que a partir da visita do Inquisidor oficial, passaram a ser investigados e inquiridos segundo às leis da inquisição.

A Capitania de Minas Gerais foi criada em meio ao chamado ciclo do ouro no Brasil, oriunda de uma cisão da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro em 1720, tendo Vila Rica com sua capital. Após 100 anos, em 1821, a Capitania de Minas foi transformada em Província e com a Proclamação da República no atual Estado de Minas Gerais.

Minas Gerais passou a ser o epicentro econômico da colônia, gerando um rápido crescimento do fluxo migratório, iniciado no século anterior, quando foi encontrado ouro na Serra do Sabarabuçu e nos ribeirões do Carmo e do Tripuí.         No auge da exploração do ouro em Minas, houve considerável migração de cristãos-novos de Portugal e de outras regiões do Brasil, além dos negros escravos que foram inseridos na Capitania para fazer o trabalho de extração mineral e lavoura.
Vários cristãos-novos residentes na Capitania de Minas foram processados no início do século XVIII. Segundo a historiadora Dra. Anita W. Novinsky (5), dos cinquenta e sete processos desses judeus conversos, sessenta e quatro por cento eram mercadores e vinte e três por cento eram mineiros, dentre os quais pouquíssimos eram magnatas. Estes processados representaram mais de setenta por cento do total de brasileiros investigados, extraditados e processados por crime de judaísmo ou pertencimento às sociedades secretas.
Quanto à acusação de pertencimento às sociedades secretas, há um registro de Augusto Lima Junior (6), que ainda é estudado por interessados na história dos cripto-judeus, de um grupo de homens, que se reunia em Ouro Preto, onde ficava a Igreja da Igreja Nossa Senhora das Mercês e Perdões, conhecida hoje como Mercês de Baixo. No local onde funcionou a confraria “Fiéis de Deus”, fechada por ordem do bispo de Mariana, é atualmente uma república de estudantes chamada de “Sinagoga”, lugar provável das reuniões da confraria, segundo pesquisa do Dr. Naftale Katz (7).
Referindo-se à suposta Irmandade em Vila Rica, Dra. Neusa Fernandes, cita em seu livro “A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII” o seguinte:
No meado do século, uma grande comunidade judaica tentou fundar uma irmandade clandestina na cidade. Usaram uma casa vizinha à Capela de Bom Jesus dos Perdões para sediar a irmandade, que se chamaria “Fiéis de Deus”, homenageando “os seguidores do profeta Eliseu que, em meio à idolatria de Israel, proclamavam sua fidelidade a Yaveh.” (8)
 
As ideias iluministas que culminaram na Revolução Francesa também produziram reflexos na Capitania de Minas, destacando os famosos e ilustres inconfidentes, entre os quais, havia descendentes de cristãos-novos protagonistas da conjuração mineira, em 1789.
Segue abaixo relação de cristãos-novos de Minas Gerais e as respectivas datas das sentenças, daqueles que foram julgados pelo Tribunal do Santo Ofício, conforme análise apresentada pela historiadora Dra. Neusa Fernandes (9):
 
LISTA DOS CRISTÃO-NOVOS DE VILA RICA (OURO PRETO) CONDENADOS PELO TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DE LISBOA POR CRIME DE JUDAÍSMO DURANTE O CICLO DO OURO NO SÉCULO XVIII:

NOMES DATA
– João Roiz Ferreira 1703
– Manuel Gomes 1703
– Matheus de Moura Fogaça (queimado na fogueira) 1716
– Fernão Gomes 1718
– Luís Froes 1719
– Pascoal da Silva Guimarães 1720
– Rodrigo Nunes Ribeiro 1720
– Manoel de Albuquerque Aguillar 1724
– Francisco Roiz Moeda 1725
– Gaspar Fernandes Pereira 1725
– Gaspar Fernandes 1726
– Luís Nunes 1726
– Manuel de Matos Dias 1726
– Diego Nunes Henriques 1728
– Miguel Dias de Carvalho 1728
– Diogo Nunes 1728
– Domingos Rodrigues Cardoso 1729
– Domingos Nunes (queimado na fogueira) 1729
– Francisco Froes 1729
– João Rodrigues da Costa 1729
– Ignácio de Almeida Lara 1729
– Manuel Mendes 1729
– Diogo Correia do Vale (queimado na fogueira) 1730
– Francisco José de Souza 1730
– David Mendes da Silva 1730
– Luís Miguel Correia (queimado na fogueira) 1730
– Manuel Batista (Francisco) 1730
– Luís Vaz de Oliveira 1730
– Marcos Mendes Monforte 1730
– Antônio Fernandes Pereira 1731
– Francisco Nunes Gomes 1731
– João Nunes Ribeiro 1731
– José Carvalho de Almeida 1731
– Manuel Mendes da Cunha 1731
– Manuel do Vale 1731
– Manuel Roiz Ribeiro 1731
– Francisco Fernandes 1732
– Gaspar da Costa 1732
– Gaspar Dias 1732
– José Lopes 1732
– Thomas Rodrigues do Vale 1732
– Manuel Gomes Nunes 1732
– Marcos Mendes Sanchez 1732
– Elena do Vale 1733
– Manoel da Costa Ribeiro (queimado na fogueira) 1734
– Manuel Mendes de Carvalho 1734
– João Góes de Mesquita 1734
– Ana do Vale 1735
– Manuel Nunes 1739

LISTA DOS CRISTÃOS-NOVOS DE RIBEIRÃO DO CARMO (MARIANA) CONDENADOS PELO TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DE LISBOA POR CRIME DE JUDAÍSMO DURANTE O CICLO DO OURO NO SÉCULO XVIII (10):

NOME DATA
– João da Cruz de Miranda 1710
– Diogo Roiz Sanches 1712
– Domingos Roiz Sanches 1712
– Antônio Gomes 1714
– David de Miranda 1714
– Salvador Paez Barreto 1716
– Luís Vaz 1719
– Gaspar Dias Fernandes 1725
– José da Cruz (Joseph) 1726
– João Cruz Henriques 1726
– Violante Rodrigues Miranda 1726
– Ignácio Dias Cardoso 1727
– João da Cruz Henriques 1729
– Manuel Francisco 1730
– Antônio de Sá 1731
– Diogo Fernandes 1731
– Diogo Fernandes Camacho 1731
– Diogo Fernandes Henriques 1731
– José Henriques 1731
– Luís Ferreira 1731
– Miguel Henriques 1731
– João Lopes de Mesquita 1732
– João António Roiz 1732
– Duarte Fernandes Camacho 1733
– Antônio Ferreira 1734
– Feliciano da Fonseca 1734
– Thomaz Vaz 1737
– Luís Mendes de Sá (queimado na fogueira) 1738
– Frutoso Mendes 1739
– João Nunes Lara 1741
– Miguel da Cunha 1747

ALGUNS CRISTÃOS-NOVOS QUE SE DESTACARAM NA CAPITANIA DE MINAS GERAIS (11):
Diogo Correia do Vale e Luís Miguel, residentes em Vila Rica em 1730 – processos 821 e 9249.
“Diogo Correia do Vale, residente em Porto, era médico formado em Coimbra. Veio para o Brasil fugindo da Inquisição. Fixou residência em Vila Rica onde foi preso em 1732 devido às várias denúncias de judaizante.  Em seu longo processo de 872 páginas existem relatos de pessoas que testemunharam a favor do réu, informando que vivia como um bom cristão, além de atender pessoas carentes da região. Entretanto, foi queimado em 6 de junho de 1732.
Já o destino de seu filho Luiz Miguel Corrêa foi tão triste quanto ao de seu pai. Este tentou escapar dos inquisidores querendo tornar-se sacerdote, tentando comprar o exame de “pureza de sangue”, como tantos faziam. Mas, foi em vão e até o último momento Luís declarou-se inocente do crime que o acusavam, ser judeu. Foi queimado em Lisboa na mesma tarde que seu pai.”

David de Miranda, português, morador em Ribeirão do Carmo durante os anos de 1721 e 1724 foi importador de tecidos de Lisboa em empreendimento com seu irmão Francisco e estendeu esse negócio até as Minas. Concomitantemente, aliou-se ao cunhado, Diogo de Ávila Henriques, que, por sua vez, era sócio do primo Diogo de Ávila. Outros primos, Gaspar Henriques e Jerônimo Rodrigues mantinham ativo comércio entre Minas e Bahia, incluindo roupas e tecidos.
Damião Roiz Moeda tinha negócio de transporte de cargas do Rio de Janeiro para Minas Gerais. Era sócio do cunhado, João Roiz Vizeu, e do proprietário de engenho João Roiz do Vale, que financiou a sociedade estabelecida na base de um terço dos lucros para cada um.
Francisco Nunes de Miranda, foi médico e rico comerciante, com domicílio na Bahia, Rio e Minas (Mariana). Mantinha relações comerciais com Francisco Pinheiro e com outro parente, Joseph de Castro, que transportava escravos de Angola para o Brasil. Foi o primeiro cristão-novo preso no século XVIII no Brasil pela Inquisição, Processo de Número 1.292.
Manuel Nunes Viana, rico comerciante de ouro, escravos, terras e gado, sediado na fazendo de Jequitaí, em sociedade com seu primo Luiz Soares.
Miguel Telles da Costa tinha relações comerciais nas praças de Minas, Rio e Portugal. Associado ao seu sobrinho concentrou suas atividades na região do Rio das Mortes mais ao sul, próximo a Curralinhos e Itaperava – MG.
João de Moraes Montezinhos tinha negócios com seu cunhado, trabalhando com carregamentos de mercadoria, recebendo uma percentagem de 5% sobre as vendas.
Em extensa pesquisa desses processos, Dra. Neusa Fernandes constatou a importância dos cristãos-novos, visto que alguns detinham o poder nas transações financeiras e comerciais da região. Os autos também noticiam dívidas e empréstimos por compras e vendas de mercadorias, de imóveis, gados, escravos, ouro e diamantes.
Borba Gato, descendente de cristãos-novos, genro de Fernão Dias Paes, foi destacado para seguir o curso do Rio das Velhas. Prosseguindo, alcançou Paraopeba fundando o arraial de Santana, onde permaneceu por alguns anos. Continuando na direção norte, chega a Sumidouro, no Serro Frio, onde fundou mais arraiais. Nesta época, surgiam os arraiais de Baependi, Matias Cardoso, Olhos d’Água, Montes Claros, Conquista e outros.
A expedição dos bandeirantes ligou, finalmente, o Norte com o Sul, do Serro Frio para Bahia.
A descoberta de pedras e metais preciosos continuou. Nas expedições que saíam de São Paulo, vieram bandeirantes também para Minas. Com as expedições de Fernão Dias e de Duarte Lopes, foi descoberto o ouro nas imediações de Mariana. Manoel Borba Gato também encontrou ouro em solo mineiro. Destaca-se também na região das Minas Gerais, a presença do cristão-novo Antônio Rodrigues Arzão (Hazán – que em hebraico quer dizer “Cantor” das rezas nas sinagogas), a quem é atribuída a primeira descoberta do nobre metal em 1643:

Foi Rodrigues de Arzão um destemido bandeirante, e o primeiro que descobriu ouro em Minas         Gerais; faleceu em 1696, deixando o roteiro de suas descobertas a seu concunhado Bartolomeu Bueno de Siqueira, que, nesse mesmo ano, se embrenhou nos sertões em busca desse metal, e consultando o dito roteiro, foi ter a Itaberaba (pedra brilhante) onde, em distância de oito léguas, fundou a povoação de Ouro Preto e outras vizinhas.” (12)

Pedroso da Silveira e Bartolomeu Bueno de Siqueira apresentaram as amostras de ouro das Minas Gerais ao Governador do Rio de Janeiro, Antônio Paes de Sande, e a partir do seu sucessor, Sebastião da Costa Caldas, essas amostras foram enviadas a D. Pedro, o El-Rei, em 1695. A partir de 1705 a região da mineração estava sob o domínio dos paulistas. Estima-se que a corrida do ouro levava anualmente para Minas de 8 a 10 mil pessoas norteadas pala visão das serras brilhantes, ricas em mica, cujo brilho se confundiria com o do ouro.
Consequentemente, novos caminhos do ouro foram surgindo. Os mais conhecidos foram o Velho, o da Bahia, o de São Paulo, o do Rio de Janeiro. Mais tarde, surgiram os caminhos para Goiás e Mato Grosso. De São Paulo para o Rio Grande do Sul a rede hidrográfica foi bastante utilizada.
O ouro descoberto descia das Minas Gerais pela Serra da Bocaina e escoava pelo porto do Rio de Janeiro. Este trecho ficou conhecido como o Caminho Velho. O segundo caminho do Rio para Minas ficou conhecido como o Caminho Novo e se tornou a grande Estrada Real, que passou a ser a principal Rota do Ouro, também conhecida como Rota do Comércio. Sua construção iniciou em 1648 por Garcia Rodrigues a pedido do Governador do Rio. O percurso seguiu pela Serra da Mantiqueira e a Serra do Espinhoso até Registro Velho e a Borda do Campo (município de Barbacena), passando por Palmira (Santos Dumont). Depois, seguia-se em direção à Juiz de Fora, Matias Barbosa, Simão Pereira, Três Irmãos, Rocinha da Negra, Paraibuna. Do outro lado do Rio Paraíba, o Caminho seguia em direção à Roça do Alferes, Serra do Couto, Tinguá (no pé da Serra), Iguaçu Velho, alcançando a Bahia da Guanabara até o Porto do Rio de Janeiro.
Esta Rota do Comércio possibilitou o povoamento de Minas e o escoamento do Ouro para a Coroa portuguesa.
A Inquisição não havia acabado e, por isso, os cristãos-novos temendo as súbitas perseguições e acusações, procuravam as montanhas de Minas, mais distante do Porto do Rio, lugares mais seguros, para ali se estabelecerem com suas famílias, explorando a agropecuária.
Após o declínio do ouro eles partiram em busca de terras devolutas. Inicialmente, estas famílias marranas (13) moravam nas imediações de Ouro Preto, Mariana, Sabará, Serro Frio, Brumado. Depois, começaram a migrar para outras regiões, em direção à Zona da Mata Mineira (mais tarde municípios conhecidos como Jequerí, Ponte-Nova, Rio Casca, Caratinga), dentre outras. Esses cristãos-novos migraram também para o norte do Estado, motivados pelo ouro de aluvião no Rio das Velhas e das minas de prata em Sete Lagoas. Mais ao norte, a região de Diamantina e Araçuaí se destacariam pela abundância de pedras preciosas.
Através dos processos inquisitoriais, pode-se analisar a procedência dos processados, deduz-se que a maioria deles era oriunda de Minas, do Rio de Janeiro e da Bahia.
Isaac Izeckson (14) calcula que a imigração para Minas chegou a 800 mil indivíduos, sendo que a metade era um expressivo número de cristãos-novos. Augusto de Lima Júnior também confirma este grande número de contingente de cristãos-novos que abandonaram Portugal, sobretudo do Norte, para se radicarem em Minas.
Afirma Dra. Neusa Fernandes:

“Na verdade, Portugal sofreu a maior sangria migratória para as Minas Gerais. Foram multidões de cristãos-novos portugueses que atravessaram os oceanos, montanhas e florestas cerradas, para justamente com os africanos, fazerem a história de um povo.” (15)

INTERESSANTES COSTUMES E TRADIÇÕES MINEIRAS QUE FORAM PRESERVADAS PELOS CRISTÃOS-NOVOS (16):
– Tradição de casamento com consanguíneos por longas gerações. Era comum o pai escolher o noivo ou a noiva para seus filhos;
– Tradição de seguir as fases da lua, correlacionando-as com o ciclo agrícola, segundo o livro de Salmos (Salmo 104:19);
– Deixar um pouco de grão nas lavouras para que os pobres e estrangeiros colhessem. Esta é também uma tradição bíblica e judaica (Levítico 23:22);
– Fama de praticar usura mediante empréstimos financeiros, mas também negociando objetos e coisas. O fato é que a alcunha de “pão-duro” é empregada a dois povos aqui no Brasil: aos mineiros e aos judeus. Desde a Idade Antiga, os judeus se destacaram entre os outros povos pela prática de mútuo. Na Idade Média, na Espanha, eles detinham o poder e o controle econômico. São considerados os primeiros banqueiros;
– O ato de dizer “Deus te crie” em alusão ao costume hebraico de dizer Haim Tovim (boas vidas) quando alguém espirra;
– O modo de preparar e enterrar o defunto e mesmo guardar luto de semana, mês e ano. O vestir-se de preto, fazendo um corte no paletó (isto no hebraico chama-se keriah) ou amarrar uma fita preta no braço em sinal de luto, eram costumes judaicos;
– O costume do banho caprichado e o ato de usar uma roupa nova no sábado;
– Expressões até hoje usadas, como: judiar; que massada, pagar sizah, ou seja,    impostos;
– E tantos outros costumes, como o varrer a casa de fora para dentro para não “jogar” a bênção fora em alusão à mezuzá (17) que devia ser colocada na porta de entrada de uma casa.
Essas são algumas tradições que se referem à nossa cultura e à nossa etnia que possuem traços da tradição judaica.

É POSSIVEL REPARAR OS ERROS DA INQUISIÇÃO?
Alguns importantes passos já foram dados na tentativa de reparar esse inconcebível erro histórico, como por exemplo:
O Papa João Paulo II, durante sua visita a Israel no ano 2000, foi ao Muro das Lamentações e colocou nas frestas de suas milenares pedras uma mensagem de seu pedido de perdão ao povo judeu pelas atrocidades cometidas durante o período da inquisição. (18)
Também o presidente de Portugal Mário Soares, em uma visita oficial a Israel em 1995, reiterou também seu pedido de perdão aos judeus em nome do Governo Português. (19)
Um pedido de perdão sempre será o primeiro passo para um conserto e reparo da história, bem como um sinal de alerta a todos para que não se incorra mais nos mesmos irreparáveis e inconsequentes erros da humanidade.
Combater a intolerância religiosa, respeitar os direitos humanos, promovendo a dignidade humana, é dever de todos nós.

BICENTENÁRIO DO TÉRMINO DA INQUISIÇÃO
No contexto de amenizar a situação penosa dos cristãos-novos aparece a figura do padre Antônio Vieira que se posicionou em defesa dos judeus e dos cristãos-novos, além de propor a reestruturação da Inquisição portuguesa. Posteriormente, no período Pombalino, vários diplomas foram promulgados por D. José, visando beneficiar os cristãos-novos através da proposição de um novo enquadramento jurídico para a formação do direito português moderno.
António Melo, relata (20):

“O fim jurídico e efectivo da Inquisição esteve agendado para a sessão de 8 de fevereiro de 1821 da assembleia constituinte (saída da Revolução liberal de 1820), por iniciativa do deputado Simões Margiocchi. Talvez por não se tratar de matéria polémica e ter obtido            a anuência do próprio inquisidor-geral de então, que viu na extinção a necessária adaptação da sociedade portuguesa às “luzes do século”, a decisão foi sendo adiada. Até que no dia 31 de março foi finalmente votada, tendo sido publicada no jornal oficial de 5 de abril de 1821.”
 
O Museu da História da Inquisição teve a importante iniciativa de propor em Belo Horizonte a criação do “Dia em Memória às Vítimas da Inquisição”, que acontece desde 2013, no dia 31 de março de cada ano, conforme o Decreto Municipal 879/13.
No próximo ano, precisamente no dia 31 de março de 2021, teremos o bicentenário do término da Inquisição em Portugal e no Brasil.
Esta data de singular importância, permitirá trazer à memória parte da história dos cristãos-novos como um dos relevantes colonizadores do Brasil, destacando a Capitania de Minas Gerais, ícone no cenário nacional, quer por suas riquezas naturais, quer pelo nobre e forte caráter de seu povo.
Estamos diante de uma oportunidade também para reiterar os princípios e valores que sempre nortearam o crescimento e desenvolvimento do nosso Estado através de resolutas pessoas, que sob a égide da bandeira da liberdade e da tolerância, tem abominado ao longo de sua história, qualquer tipo de discriminação devido à raça, cultura, tradição e, sobretudo, aquela de cunho religioso. Virtudes indubitáveis que contribuíram e contribuirão para a formação de uma sociedade mais próspera, saudável e fraterna, alicerçada na legitimidade de respeito aos seus semelhantes.
A história é constituída de memórias e trazer à nossa memória aquilo que pode nos dar esperança de dias melhores, contribuirá com certeza para o aperfeiçoamento do gênero humano.

NOTAS
(1)    Autor: Marcelo Miranda Guimarães
Graduado em Engenharia Industrial pelo CEFET,1976 -Associado Efetivo do IHGMG, Cadeira 39 e Associado Correspondente do IHGRJ. Fundador do primeiro Museu da História da Inquisição no Brasil.
(2)    WIZNITZER, Arnold. Os Judeus no Brasil Colonial. São Paulo-SP: A Pioneira – Ed. Universidade de São Paulo-SP, 1966, p.1,2, 5 e 6.
(3)    Cristãos-Novos: judeus batizados à força em Portugal a mando do rei D. Manuel I; esta expressão era usada também para distingui-los dos cristãos-velhos, aqueles que já eram tradicionalmente católicos e que não pertenceram à outra religião;
(4)     LIPINER, ELIAS. Gaspar da Gama, um converso na frota de Cabral. Rio de    Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p.105.
(5)    NOVINSKY, Anita Waingort. Os judeus que construíram o Brasil. São Paulo: Ed. Planeta. 5ª. edição, 2018, p.163.
(6)    LIMA JUNIOR, Augusto de. A Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1978. p.133.
(7)    KATZ, Naftale. Os Cristãos-Novos em Vila Rica no século XVIII. Belo Horizonte-MG: publicação própria, 2018, p.15.
(8)    FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2014, p. 46-47; 79-80.
(9)    Ibidem p. 127 a 209.
(10)  Ibidem p.127 a 209.
(11)  Ibidem p. 94 e 95.
(12)  LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana, Vol. 1. São Paulo:     Projeto Genealogia Paulistana, 1999, p.193.
(13)  Marranos, alcunha para referir-se aos judeus, significando “porcos”.
(14)  IZECKSON, Isaac. História dos Judeus. 1º Vol. Rio de Janeiro: Ed. do Autor,    1973.
(15)  FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. 2ª Edição.  Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2004, p.88.
(16)  GUIMARÃES, Marcelo Miranda. Há restauração para os judeus Descendentes da Inquisição. Belo Horizonte-MG: AMES,2004, p.104,105.
(17)  Mezuzá – caixinha de madeira contendo um texto bíblico do livro de Deteuronômio (Cap. 6:4-9) que era afixada nos marcos das portas de suas residências.
(18)  EXSURGE DOMINI. Encíclicas: Cartas de João Paulo II sobre a Inquisição, Vaticano, 15 de junho de 2004. Tradução: Zenit.
(19)  TAPADEJO, Carolino. Texto extraído do discurso de Presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide, Portugal. DVD produzido pela Câmara Municipal, 1996.
(20)  MELO, António. Newsletter da Pglobal. www.pglobal.publico.pt:Portugal. https://www.publico.pt/2001/04/05/jornal/o-fim-da-inquisicao-em-portugal-foi-ha-180-anos-156351, 5 de abril de 2001.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, Flávio Mendes de. Raízes judaicas no Brasil. São Paulo: Arcádia, 1982.
ESCROIGNARD, Victor. A Odisséia Sefaradita (Título Original: L’Odyssée Sepharade). Belo Horizonte: (AMES), 2012.
FALBEL, Nachman. Estudos sobre a comunidade judaica no Brasil. São Paulo: Federação Israelita do Estado de São Paulo, 1984.
FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. 2ª Edição.  Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2004.
FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2014.
GUIMARÃES, Marcelo Miranda. Há restauração para os judeus Descendentes da Inquisição. Belo Horizonte-MG: AMES,2004, p.104,105.
INSTITUTO ESTRADA REAL. Mapa com todas as cidades da Estrada Real. Disponível em: <  http://www.institutoestradareal.com.br/assets/materiais/mapa-ilustrativo-da-estrada-real.jpg > Acesso em junho/2020.
IZECKSON, Isaac. História dos Judeus. 1º Vol. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1973.
LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana, Vol. 1. São Paulo: Projeto Genealogia Paulistana, 1999.
LIMA JÚNIOR, Augusto. A Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1978.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542 – 1654. Recife: Ed. Massangana, 1966.
NOVINSKY, Anita Waingort. Ser Marrano em Minas Colonial. Revista Brasileira de História, vol. 21, n. 40. São Paulo: 2001.
SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro 1530-1680. São Paulo: Pioneira, Universidade de São Paulo, 1976.
WIZNITZER, Arnold. Os Judeus no Brasil Colonial. São Paulo-SP: A Pioneira – Ed. Universidade de São Paulo-SP, 1966.

Compartilhe!