O povo brasileiro é fruto e fonte criadora de pluralidade cultural. A presença de outros povos em território nacional ajudou a moldar algumas de nossas principais características culturais, desde o desembarque de Cabral na terra que viria a ser o Brasil.

Essa diversidade deve ser reconhecida, respeitada e valorizada. Pois um povo que não conhece suas raízes, é um povo sem identidade. Pensando nisso, procuramos resgatar nesse estudo a influência da cultura judaica sefaradim na civilização brasileira, especialmente em Minas Gerais, que é o tema central da nossa pesquisa. Consideramos importantíssimo marcarmos essa influência e nos lembrarmos da vertente judaica junto com o índio, junto com o negro, junto com o português, e com vários outros povos – italianos, sírios e libaneses, poloneses, japoneses, etc. – que aqui vieram compartilhar conosco da sua cultura.

Resgatar esses valores é resgatar a própria cultura mineira, a qual está intrinsecamente ligada à tradição milenar desse povo. Tradição que se viu camuflada, esquecida em muitas casas, simplesmente para que as famílias pudessem fugir às mãos de ferro da Inquisição. Quantos jovens e crianças não tiveram de renegar seu sangue, sua crença, sua família? Quantos homens e mulheres não se viram obrigados a deixar seus lares, suas terras e seus parentes, jogados numa aventura de futuro incerto, em frágeis naus, a fim de virem para uma terra estranha, sem saber o que os aguardava?

A Península Ibérica (Portugal e Espanha) contribuiu, de maneira avassaladora, durante a Inquisição que durou cerca de três séculos, se não para o genocídio, pelo menos para o abafamento de boa parte da cultura, religião e arte de um povo de tão rica formação humanística. A assimilação deles em nossa cultura foi imposta pela Inquisição, sob pena de expatriação ou morte, deixando muitas características judaicas no substrato dos brasileiros. O estudo não pretende ser histórico nem profundo, apenas aborda e defende que muitos costumes, hábitos ou tradições do interior mineiro sofreram influência marcante dos judeus sefaraditas portugueses que vieram para Minas fugindo da Inquisição no nordeste brasileiro.

Após o batismo forçado pela Inquisição de Portugal, esses judeus ficaram conhecidos como “cristãos-novos”, para diferenciá-los dos “cristãos-velhos”. Muitos continuaram a praticar a sua religião secretamente e, por isso, eram constantemente vigiados e denunciados ao “Santo Ofício” como judaizantes; estes tinham todos os seus bens confiscados, além de viverem humilhados e confinados naquele país, isso quando não eram torturados e queimados vivos nas fogueiras.

O descobrimento do Brasil em 1500 foi uma porta que se abriu para esse povo perseguido. Milhares de “cristãos-novos” vieram para o Brasil na época da colonização já em 1503 (GUIMARÃES, 1999). Mais tarde, com a atuação do Tribunal do Santo Ofício na Bahia em 1591/93, e em Pernambuco em 1593/95 e novamente na Bahia em 1618, os judeus que, a princípio, se encontravam nessas duas capitanias, dispersaram-se por todo o Brasil, principalmente para o Sul e Sudeste (LOURENÇO, 1995). Com a descoberta do ouro nas capitanias de Minas em fins do século XVII, ocorre um movimento em direção ao território mineiro. Segundo a historiadora FERNANDES (2000), a maioria era formada por cristãos-novos que se estabeleceram na região, em atividades econômicas e no comércio.

Mas que marcas eles deixaram na formação do povo mineiro? Que costumes, hábitos ou tradições podemos identificar em Minas como sofrendo influência daqueles judeus cristãos-novos? Que influência exerceram na formação da nossa identidade?

A este grupo étnico que ajudou a povoar o Brasil nos três primeiros séculos do descobrimento e a seus descendentes que ora representa o grosso da população brasileira, devemos esta grande similitude com os sefaradins ibéricos. A alma profundamente quebrantada pela fé em D’us, o espírito pacífico e de bom humor, um povo amante da paz com uma grande capacidade para viver e sair de situações difíceis e adversidades seculares – o famoso “jeitinho” brasileiro – , uma tendência universalista para as coisas filosóficas, as habilidades com o comércio, etc. Em suma, um povo apaixonado e obstinado, uma raça bonita e sábia, apesar de seus defeitos e mazelas.

Analisando estas e outras características, percebe-se claramente que o povo do interior do estado de Minas Gerais parece ser o retrato mais fiel dos judeus portugueses do século dezesseis a dezoito que vieram povoar este país.

O temperamento do homem dessas regiões, seu aspecto físico, os costumes em vigor até bem pouco tempo, herdados dos antepassados povoadores, indicam influência preponderante desses judeus ibéricos. Também os registros de nomes demonstram uma concentração de judeus cristãos-novos nessa região do interior mineiro, proporcionalmente entre as mais densas do mundo.

O cancioneiro popular de Minas exprime bem o espírito mineiro. Aqui as coisas são feitas sem pressa, para durar – o tempo pouco importa. Diz-se que o mineiro é “fechado” como sua terra. Esse fechamento traduz-se numa sobriedade evidenciada no seu modo de ser – no comer, no vestir, no falar. O mineiro escuta muito mais do que fala e não demonstra facilmente seus sentimentos. “Não desperdiça gestos, como não desperdiça nada”(Alceu Amoroso Lima).

Certamente aprendemos com nossos antepassados a não desperdiçar, pois seus bens tinham sido espoliados pela Inquisição e vieram para o Brasil sem nada para aqui construírem suas vidas. Daí o conceito de que o mineiro é “pão-duro”, em outras palavras, “econômico”. O mineiro “calado” aprendeu com seus ancestrais a esconder seus sentimentos e crenças para não ser vítima dos “deduradores” ou “espiões” da Inquisição. Tanto é assim, que quando alguém está fazendo perguntas demais, diz-se que ele está inquirindo muito (inquisição = ato ou efeito de inquirir).

E o tradicionalismo mineiro? Quando se fala na “tradicional família mineira” associa-se logo a idéia a uma atitude ultraconservadora. O sistema patriarcal mineiro tem suas raízes nos colonizadores cristãos-novos vindos na época da mineração – aqui chegaram com seus valores tradicionais intactos, plantando-os em Minas. O mineiro é triste, repete-se constantemente. De uma tristeza guardada, que transparece em sua arte e só se denuncia sutilmente, em gestos discretos. De onde viria essa tristeza? Talvez da saudade que se perdeu no tempo. Saudade que os judeus sentiram quando deixaram a terra onde viveram por tantos séculos – a península ibérica – e emigraram para o Brasil. Também da tristeza de se saber perseguido e vigiado por onde quer que vá.

É em Minas também que se encontram as primeiras expressões de nacionalidade e de justiça. E de reivindicações pelos direitos adquiridos, presentes nos motins e revoltas do século XVIII. A circulação do ouro e de diamantes levava, em seu bojo, a circulação das idéias, suscitando rebeliões que, hoje, são reconhecidas como sementes de nossa independência nacional e de nosso acesso à modernidade. A sucessão de rebeliões impressionou o governador, conde de Assumar, que, queixando-se ao rei pela sublevação de Felipe dos Santos, Vila Rica (1720), afirma: “O espírito de rebelião é quase uma segunda natureza das gentes de Minas” (FERNANDES, 2000).

O que era rebelião para o reino português, significava justiça para o povo mineiro. Foi a dominação e a insubmissão, a coragem e o medo, a desconfiança e a luta, a saudade e a esperança, a discrição e o apego à liberdade, que fizeram um povo mineiro profundamente ligado ao seu berço, à sua gente e à sua terra. A descoberta do ouro em Minas que, segundo alguns autores se deveu ao cristão-novo Antônio Rodrigues Arzão, em 1693, acarretou forte movimento migratório, vindo da própria Colônia ou da Metrópole para o interior. Na primeira metade do século XVIII, segundo Neusa FERNANDES (2000), estima-se que a corrida do ouro levava para as Minas, oito a dez mil pessoas por ano.

Em pouco tempo, a capitania de Minas Gerais tornou-se a mais populosa da Colônia, suplantando a da Bahia e a do Rio de Janeiro. Vila Rica, uma das primeiras vilas surgidas, foi o centro comercial da capitania, onde atuaram a maioria dos cristãos-novos processados pela Inquisição em Minas. No meado do século, uma grande comunidade judaica tentou fundar uma irmandade clandestina na cidade. O historiador Elias José LOURENÇO (1995, p. 73-77) nos conta com maior clareza este fato e narra os costumes que ele encontrou ali e em outras regiões próximas:

“Em Vila Rica, meados do século dezoito, havia uma comunidade judaica muito bem disfarçada, que tentou organizar-se numa falsa irmandade, com o título de “fiéis de Deus”. Como se sabe, assim se intitulavam os seguidores do profeta Eliseu, que em meio da idolatria de Israel, proclamava sua fidelidade a Yaveh. Chegaram a ocupar uma casa junto da atual capela do Bom Jesus dos Perdões, então em construção, e enganaram o bispo de Mariana, que somente depois de muito tempo desconfiou dessa confraria e resolveu dissolvê-la. Esse e outros fatos, que seria longo enumerar, explicam os costumes que ainda encontrei em minha infância e mocidade e que perduram no interior de Minas.[…] Os filhos e netos de judeus, perdida a lembrança religiosa, adotaram a prevenção contra os do seu sangue e acometiam contra eles com frases que os depreciavam. […] O sujeito econômico, “unha de fome”, como se dizia, era apelidado de somítico, isto é, semítico. Fazer sofrer alguém, prejudicar, ofender, etc., era “judiar”… Afirma-se que quando um judeu disfarçado, ou seja, marrano, estava para morrer, a fim de evitar que novamente ele se revelasse adepto da lei de Moisés, comprometendo os demais, era logo chamado o “abafador”, isto é, um sujeito que tinha por missão estrangular habilmente o doente. Isso permaneceu em nossos costumes com os conhecidos personagens que “ajudavam a morrer”. Quando alguém definhava em moléstia longa, diziam que “estava tão fraco que nem tinha força para morrer”. Chamando o abafador, ele afastava do quarto do doente as pessoas da família, encostava a porta e começava a operação. Punha um crucifixo nas mãos do doente, passava os braços pelas costas e aplicava o joelho contra o tórax… À medida que ia aumentando a compressão contra o peito do moribundo, asfixiando-o, em voz alta, para ser ouvido de fora, ia dizendo: – Vamos, meu filho! Nosso senhor está esperando! Quando o paciente exalava o último suspiro, o abafador compunha o corpo, chamava as pessoas da família e lhes comunicava que o fulano havia morrido “como um passarinho”, isto é, suavemente […] Esses homens que “ajudavam a morrer” ainda existem em distantes povoados de nosso interior. “Lamparina” é um ritual judaico e persiste no interior do estado. Ainda de uso doméstico, acendia-se a lamparina de azeite no quarto da parturiente porque a criança, antes de ser batizada ou passar pela circuncisão, não pode ficar no escuro. […]. Aos sábados, acendia-se diante do oratório uma vela, que deveria arder até o fim do dia, costume judaico que se cristianizou […]; os sábados eram ainda os dias de vestir “roupa lavada”. O sinal de hospitalidade mais sensível, revelador de especial atenção para com um viajante, e a primeira coisa a fazer antes de qualquer alimento, era mandar-lhe ao aposento uma bacia de água morna para lavar os pés. Recordação milenar dos desertos da Ásia, transformada em cortesia. Em Minas, em São Paulo e creio que em quase todo o Brasil de povoamento antigo, ninguém comia carne de animal de sangue quente que não tivesse sido “sangrado”(ex.: a galinha). Este uso é de uma importância transcendente para o judeu, e como tal ficou arraigado em seus descendentes como costume irrevogável.[…]. Do mesmo modo, apesar da riqueza piscosa de nossos rios, ela nunca constituiu base de alimento para nossas populações, salvo as forçadamente ribeirinhas. Era colossal o consumo de peixe salgado que vinha para Minas, em lombo de burro, no período colonial, substituído depois pelo bacalhau. É que os peixes mais abundantes em nossos rios são “peixes de couro”, expressamente proibidos pelo livro de Levítico”.

Com o passar do tempo, passando a febre do Eldorado, os cristãos-novos se segregaram, por assim dizer, entre as montanhas de Minas, longe dos litorais e portos marítimos, distantes de outras correntes migratórias, dando ao povo mineiro peculiaridade étnica e cultural com características bastante definidas. No começo, famílias como os Leões, os Fortes, os Henriques, os Carneiros, os Campos, etc., chegaram a constituir povoados, verdadeiros “guetos”, que ainda hoje se reconhecem por não terem capelas em suas ruínas, em constraste com os fundados por cristãos-velhos, onde a igreja era uma das primeiras edificações (LEAL, 2000). Em Paracatú, Serro Frio, Sabará e imediações e em Pitanguí tinham suas maiores aglomerações. Eram numerosos também nos arraiais que cercam Ouro Preto e Mariana e ao longo do caminho do Rio Grande e da Bahia. Havia, porém, cristãos-novos espalhados por todo o território mineiro: nas estradas, nas entradas das vilas e nos caminhos de “ir-e-vir”.

Considerando-se o trabalho desbravador que esses cristãos-novos realizaram e os movimentos comerciais que inovaram, pode-se dizer que a eles se deve a realização dos primeiros contratos, a criação dos primeiros empregos, promovendo negócios e instrumentos que revertiam para a Coroa portuguesa, ficando, porém os lucros e parte da riqueza em mãos dos moradores. A historiadora Neusa FERNANDES (2000) nos relata que a terceira década do século XVIII foi o período em que a ação inquisitorial tomou maior impulso em Minas. Num espaço de dez anos, foram presos em Minas cerca de 30 cristãos-novos, todos acusados de judaísmo. Ao ler os processos analisados pela historiadora em seu livro, percebemos que muitos deles foram criados na religião católica, até a idade de 11, 12, 13, 19 ou mesmo 20 anos, quando então abraçavam o judaísmo, persuadidos ou influenciados pela avó, ou pela mãe. Sabemos que no judaísmo é a mulher quem educa as crianças, cabendo-lhe a tarefa de ensinar-lhes todas as tradições e costumes. Esse hábito está ainda presente nas famílias mineiras, onde à mulher cabe a tarefa de educar os filhos, discipliná-los e iniciá-los na religião, ficando o marido apenas com a incumbência de trabalhar e suprir a casa.

Além disso, a “religião de verniz” ou o “ir para a igreja sem convicção interior”, atribuída pelo clero católico aos brasileiros em geral, é originária, talvez, do comportamento dos cristãos-novos que, por circunstâncias ou displicência, ficavam anos embrenhados nas matas, sem comungar e confessar. A posição espiritual do brasileiro, que se mantém relativamente indiferente nas discussões religiosas, pode ser fruto do conturbado ambiente sócio-religioso-colonial (MIZRAHI, 1999) da época. Os três séculos de perseguição, movidos pela Inquisição aos cristãos-novos luso-brasileiros levaram o grupo ao inconformismo. Vivendo numa “marginalidade interior”, “homem dividido” segundo a historiadora Anita Novinsky, temendo sempre possíveis denúncias, o cristão-novo tornou-se permeável e atraído para idéias e movimentos de oposição ( Como prova a Inconfidência Mineira).

O cristão-novo se sentia em permanente transgressão. Não era católico nem judeu. Praticava um dualismo religioso, apresentando-se exteriormente como cristão-novo e praticando os ritos judaicos dentro de casa ou da prisão, sempre com a preocupação de se ocultar para não despertar suspeitas nos vizinhos. Essa situação é bem expressa no romance “A saga do marrano” (AGUINIS, 1996):

“A nós foi aplicada e continuam a aplicar a violência. O efeito é trágico: somos católicos na aparência para sobreviver na carne, e somos judeus por dentro, para sobreviver no espírito” .

A influência mais forte dessa ambigüidade, desse dualismo, talvez esteja no “fechamento dos mineiros”, no seu jeito calado, na sua resistência em falar das suas crenças mais íntimas. Guardados nas montanhas de Minas, estão até hoje muitos traços dos cristãos-novos e seus descendentes, expressos no que se chama hoje de: conservadorismo mineiro, política mineira ao pé do ouvido, pão-durismo mineiro, humor mineiro, desconfiança mineira, o jeito amaneirador do povo mineiro, a superação de obstáculos, o apego à justiça, enfim, toda “mineirice” se identifica muito com os judeus portugueses dos séculos XVI, XVII e XVIII.

A seguir, procuramos listar alguns costumes judaicos incorporados à tradição mineira, a maioria do livro do LEAL (2000) , outros tirados da informação verbal e da tradição oral:
• Passar a mão na cabeça: isto é, relevar, perdoar, acarinhar, ignorar uma falta de alguém. É a bênção judaica.
• Sefardana: Para o historiador Augusto de Lima, a expressão insultuosa de Sefardana é deturpação intencional dos nomes “Sefarad” [1] e “Sefaradins”.
• Jurar pelo eterno descanso de um morto querido: juro pela alma do meu pai, ou da minha mãe, e assim por diante. É resíduo de um rito judaico.
• Deus te crie: ante o espirro de uma criança. Herança da frase hebraica – Hayim Tovim.
• Amuletos: usado muito no interior, os signos de Salomão ou de David (a estrela de seis pontas) e até mesmo nas porteiras e muros das casas, embora para o judeu não seja amuleto, mas seu significado foi deturpado entre os descendentes assimilados.
• Varrer a casa: da porta para dentro das casas, costume arraigado até os dias de hoje.
• Passar mel na boca: quando da circuncisão, o Rabino passa o mel na boca da criança para evitar o choro. Daí a origem da expressão: “Passar mel na boca de fulano”.
• Siza: vem do hebraico “Sizah”, quando vai pagar o imposto. Pagar a siza.
• Massada: palavra muito usada pelos mineiros para explicar uma tragédia: “foi uma massada”. A fortaleza de Massada, perto do Mar Morto, foi destruída pelos romanos nos anos 70 d.C., quando pereceram mais de 800 judeus, segundo afirma Flávio Josefo.
• Lavar os mortos: largamente usado no interior das Minas Gerais. Usado ainda, em algumas regiões. Está bem desaparecido.
• Para o santo: o hábito sertanejo de, antes de beber, derramar uma parte do cálice, tem raízes no rito hebraico milenar de reservar, na festa do pessach (páscoa), copo de vinho para o profeta Elias (representando o Messias que ainda virá).
• Punhado de terra: costume de jogar terra no caixão quando ele é descido na sepultura.
• Mezuras: fazer mezuras, reverências. Talvez venha do Mezuzah [2] hebraico colocado nas portas, ao qual os judeus antes de entrar fazem uma reverência.
• Carapuça: a expressão “fulano de tal pôs a carapuça”, ou “esta carapuça não serve para mim”, vem dos tempos da Inquisição, quando o réu era obrigado a colocar uma carapuça sobre a cabeça, assumindo a culpa..
• Judiar: termo/dito-popular que vem dos tempos da Inquisição, em que se maltratavam e perseguiam os judeus – significa atormentar e torturar os judeus.
• Mesa de mineiro tem gaveta para esconder a comida quando chega visita: esse costume, conhecido dos mineiros e relacionado à sovinice, tem outra raiz. É o costume que tinham os cristãos-novos e que passou aos seus descendentes, de guardar a comida que estavam comendo quando chegava um visitante – normalmente um cristão-velho. Para isso, as mesas da copa tinham gavetas. A raiz desse costume é que muitos cristãos-novos, apesar do batismo forçado, continuavam praticando secretamente a sua religião. E no judaísmo, a comida deve ser kasher, ou seja, a comida recomendada pela Torah, na qual existem alimentos proibidos aos judeus – Levíticos 11 – como, por exemplo, a carne de porco, peixe sem escama, etc. Dentro desse preceito, há receitas tipicamente judaicas. E se um cristão-velho chegasse de repente à casa e visse essa comida típica, fatalmente o cristão-novo seria reconhecido e denunciado. Por isso, eles guardavam o que estavam comendo nas gavetas, e ofereciam outra coisa ao visitante, como o queijo minas, por exemplo. Esta é a raiz desse costume, que muitos mineiros até brincam a respeito, mas que não está relacionado à sovinice e sim ao medo da delação (MENDA, 2000) [3].
• Lenda da Verruga: como se sabe, o dia no judaísmo começa na véspera. Então, o “shabat” – descanso judaico no Sábado, começa na véspera com o nascimento da primeira estrela. Se um judeu apontasse para o céu quando visse a primeira estrela para anunciar o início da festa do Shabat, como cristão-novo ele estaria se denunciando. O adulto poderia se controlar, mas o que se diria para as crianças? “- Não aponta que se nasce verruga”. Era a única maneira de poder controlá-las, para que a família não fosse descoberta e perseguida pela Inquisição (MENDA, 2000).
• Ficar a ver navios: era a época de ouro da Península Ibérica. O rei Dom Manuel precisava dos judeus portugueses, pois eram toda a classe média e toda a mão-de-obra, além da influência intelectual. Se Portugal os expulsasse logo como fez a Espanha, o país passaria por uma crise terrível. Então o rei fingiu marcar uma data de expulsão, que era a Páscoa. No dia marcado, estavam todos os judeus no porto esperando os navios que não vieram. Todos foram convertidos e batizados à força, em pé. Daí a expressão: “ficaram a ver navios”. O rei então declarou: não há mais judeus em Portugal, são todos cristãos (cristãos-novos). Era 1492. Durante mais ou menos 30 anos eles continuaram praticando o judaísmo por debaixo do pano, às escondidas, mas com tolerância portuguesa, até a chegada da Inquisição. Com a Inquisição, veio a vigilância, a perseguição, a intolerância, e foi aí que muitos vieram para o Brasil fugindo dela(MENDA, 2000).

Além dos costumes e expressões mencionadas acima, há um outro aspecto que gostaríamos de mencionar, embora seja tema para outro estudo mais amplo. É a questão dos sobrenomes.

Até a época de Napoleão, o judeu não tinha sobrenome: era “fulano filho de fulano” – não tinha identidade civil. Com a conversão forçada, eles têm de assumir um sobrenome e adotam nomes de famílias tradicionais cristãs, ou nome de um local, ou de uma árvore, ou da sua profissão, ou de um animal, ou de um português ilustre.

Os arquivos da Inquisição da Torre do Tombo, em Lisboa, pesquisados por WIZNITZER (1996, p.35), traz os nomes de 25 judaizantes brasileiros processados na Bahia, dos quais citaremos apenas alguns sobrenomes: Antunes, Costa, Duarte, Gonçalves, Fernandes, Lopes, Mendes, Miranda, Nunes, Rois, Souza, Teixeira, Ulhoa e outros.

Outros sobrenomes de pessoas processadas no Brasil pela Inquisição, devidamente documentados, são (GUIMARÃES, 1999): Abreu, Andrade, Barros, Borges, Cardozo, Carvalho, Coelho, Carneiro, Cunha, Ferreira, Figueira, Gomes, Henriques, Leão, Lemos, Machado, Miranda, Moura, Nogueira, Oliva, Oliveira, Paes, Pinheiro, Pires, Ramos, Rios, Reis, Serra, Sylva, Simões, Soares, Tavares, Telles, Valle, Vaz, etc.

Acompanhando a história dessas famílias, nota-se que grande parte delas se dirigia em direção ao Sul, fixando residência nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Outros subiam em direção ao norte do país, especialmente Pernambuco e Pará (GUIMARÃES,1999). Esses estados também foram muito influenciados por uma série de costumes judaicos, que não abordaremos nesse estudo. Ressaltamos que não podemos afirmar que todo brasileiro, cujo sobrenome conste desta lista seja necessariamente descendente de judeus portugueses. Para saber-se ao certo precisaria de uma pesquisa mais ampla, estudando a árvore genealógica das famílias, o que pode ser feito com base nos registros disponíveis nos cartórios.

Apesar disso, o que queremos frisar é que há uma grande concentração desses sobrenomes em Minas (e outros que não citamos por questão de espaço), mostrando a descendência dos cristãos-novos. A influência histórica judaica-sefardita é inegável.

A história da formação do povo mineiro e do povo brasileiro em geral, estará mutilada até que se faça um profundo estudo sobre os cristãos-novos e seus descendentes da Península Ibérica, e da grande influência que exerceram na vida do povo mineiro e brasileiro espalhado por esse imenso país.

Essa história está muito próxima de nossos olhos, de nosso tato, de nossos costumes, portanto é muito reveladora e com fatos muito evidentes. Basta escrevê-la sem tendências e nem preconceitos.

Orgulhemo-nos, como mineiros, da nossa herança cultural. Afinal, um povo para crescer, precisa da sua identidade, e para um povo conhecer sua identidade, precisa conhecer e resgatar suas raízes o mais profundo que puder.

 

REFERÊNCIAS
1. AGUINIS, Marcos. A saga do marrano. São Paulo: Scritta, 1996. 486 p.
2. FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000. 204 p.
3. GUIMARÃES, Marcelo Miranda. Você sabia que muitos brasileiros são descendentes de judeus? Revista de estudos judaicos. Belo Horizonte: v.2, n.2, p.42-47, dez.1999.
4. LEAL, Waldemar Rodrigues de Oliveira. Os judeus em Minas Gerais: “cristãos-novos”. Belo Horizonte: Luciana Leal Ambrosio, 2000. 36 p.
5. LOURENÇO, Elias José. Judeus: os povoadores do Brasil colonia. Brasília: ASEFE, 1995. 88 p.
6. MEGRICH, José. Quinto centenário do descobrimento do Brasil e dos primeiros judeus refugiados. Menorah. Rio de Janeiro, v.38, n.480, p.21, maio/junho 1999.
7. MENDA, Nelson, KUPERMAN, Jane. Programa Jô Soares: entrevistas.Direção Globo. Filme VHS, 2000, 22min., color. (Fita de vídeo, gravação particular da TV).
8. MINAS Gerais: berço da riqueza do Brasil. São Paulo: Três, 1994. 99p.
9. MINAS Gerais: mapa econômico. In: A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Neusa Fernandes. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000, p. 91.
10. MIZRAHI, Rachel. Os 500 anos da presença judaica no Brasil.Revista de estudos judaicos. Belo Horizonte, v.2, n.2, p. 59-65, dez. 1999.
11. SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos-novos, jesuítas e Inquisição. São Paulo: Pioneira, 1969. 222 p.
12. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro(1695-1755): relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira de Estudos Brasileiros, 1992. 197 p.
13. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro, 1530-1680. São Paulo: Pioneira, 1976. 406 p.
14. FALBEL, Nachman. Estudos sobre a comunidade judaica no Brasil. São Paulo: Federação Israelita do Estado de São Paulo, 1984. 197 p.
15. SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos-novos. 4 ed. Porto: Nova Limitada, 1969. (Coleção Civilização Portuguesa – v. 2) 317 p.
16. WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Pioneira, 1966. 217 p.
17. WOLFF, Egon e Frida. Judeus nos primórdios do Brasil-república. Rio de Janeiro: Biblioteca Israelita H.N. Bialik / Bloch, 1982. 384 p.

[1] Sefarad – quer dizer “Península Ibérica” em hebraico.
[2] Mezuzah – pedaço de madeira ou metal ôco por dentro que contém dentro dela um pequeno rolo escrito em hebraico o texto de Deuteronômio 6:4-9. A mezuzáh é pregada em cada porta da casa de um judeu para lembrá-lo de que D’us é único e de que ele deve cumprir e obedecer seus mandamentos.
[3] MENDA, Nelson, KUPERMAN, Jane. Casal de origem sefaradita que pesquisa a influência da cultura judaica sefaradita na vida dos brasileiros, entrevistado pelo Programa Jô Soares, nov.2000.

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